José Bértolo — Páginas de um diário ou Espectros avulsos

 21.07.2022

Na sua História Natural, Plínio o Velho descreve o nascimento do retrato: a filha do oleiro Butades de Sícion desenha na parede a linha da sombra projectada do rosto do seu amado, imediatamente antes de ele partir para o estrangeiro. Na ausência de um corpo, permaneceria a memória da sua presença em traço material e visível, com uma força simbólica superior à carne. A vontade da representação nasceu, assim, como resposta à iminência da desaparição de um amante. As imagens substituem os corpos e o amor carnal dá lugar a uma devoção religiosa em sentido verdadeiramente etimológico. Talvez seja aí que começa de facto a vida do espírito, o amor que nos transforma e nos cumpre: na dedicação às imagens, às sombras, aos fantasmas.


28.07.2022

 

Vejo-me nos olhos deste objecto morto, contiguamente animal, que hoje já não vê verdadeiramente, ainda que retenha algo (quanto mais não seja, a forma) do animal que outrora foi, o qual possuíra, à partida, a capacidade de ver. Segundo uma concepção animista da fotografia (e eu não concebo outra maneira de a conceber), este objecto é dotado de vida a partir do momento em que o olho através do visor. Trata-se de uma vida fotográfica, o que pode levar um céptico a afirmar que não se trata, afinal, de verdadeira vida. Mas ela é, de facto, verdadeira, porque toda a vida é verdadeira na fotografia, pelo menos sempre que existe uma pessoa a olhar para ela. Detenha-se nesta criatura durante uns momentos e verá uma suspeita de respiração, um redireccionamento da pupila, o desenho de um sorriso. Se não vir, está morto para a fotografia.


12.10.2022

 

Perdi a conta das vezes que vi Letter from an Unknown Woman. Hoje, porém, vi-o a partir de uma perspectiva algo distinta. Sempre fui sensível ao melodrama da protagonista Lisa — afinal, liga-nos uma certa sororidade —, mas, pela primeira vez, comovo-me com o man's film dentro deste woman's film: o drama trágico de Stefan. Este é um homem que, tendo nascido, não vive; que, parecendo ser animado, é pétreo; que, como peixes de aquário num restaurante chinês em Lisboa, não tem memória, apenas presente; que, crendo partilhar o leito, está só; que não se apercebe (até ser tarde de mais) de que a vida existe; que não reconhece em carne a deusa desconhecida que só conhece em pedra; que nasce, finalmente, para a "vida consciente" (adquirindo nesse momento o dom da memória) no dia da sua morte. No dia, aliás, em que se lhe torna impossível continuar a viver, porque reconhecer Lisa como a sua deusa desconhecida num momento em que ela já não existe implica discernir a perda da possibilidade da vida.
No fim, Lisa escreve: "If only you could've shared those moments…", o que é doloroso: afinal, Lisa esteve "sozinha acompanhada" em todos aqueles momentos que partilhou com Stefan. Mas imaginemos o que Stefan pensará ao ler estas palavras. Porventura algo como: "If only I could've shared those moments…” Stefan "esteve não estando" em todos aqueles momentos partilhados com Lisa. Se Lisa é certamente uma figura espectral neste filme, Stefan não o é menos. Ele não é só o ideal, a projecção, de Lisa. É sobretudo um fantasma na sua própria vida. Ela sempre soube que era um fantasma, o que lhe permitiu sê-lo plenamente. Ele só o soube tarde demais. Fantasma de um fantasma.
Por fim, esta também é uma história sobre duas vidas que, sendo mal vividas, puderam ser, de alguma forma, rectificadas na morte. Chacun son afogamento… Chacun son happy ending…


26.10.2022

 

Cheguei ao terminal rodoviário com tempo para beber um café antes da partida. Enquanto fazia o pedido ao balcão, vislumbrei-a na esplanada. Não consegui (porque não quis) ver-lhe bem o rosto. Sentei-me, de costas, duas mesas à frente dela. Sentia o olhar dela em mim. Ela saiu alguns minutos depois. Levava um trolley, e eu vi-a atravessar a passadeira. Levantei-me e segui-a, mas perdi-a de vista. Tinha entrado no terminal. Parei no meio da passadeira, olhei para o céu — estava um assombro —, e fotografei-o.
Lógico é que ela não fosse a pessoa que imaginei nela, porque essa outra está morta. Mas por um momento aquele corpo pertenceu à outra mulher, pelo menos ao nível do imaginário — que é o real mais real.
Durante a viagem de autocarro pensei nela, em como ela talvez tivesse feito esta mesma viagem muitas vezes, dado que dava aulas na mesma escola que eu, na cidade para onde agora me dirigia. Depois de sair do autocarro, e enquanto caminhava, contemplei a possibilidade de a sua rotina ter sido semelhante à minha: apanhar o autocarro em Lisboa, sair no centro da cidade, fazer questão de atravessar sempre o parque, observar os cisnes, as árvores, as estátuas, os tenistas, tirar algumas fotografias, dar a aula, regressar nos trilhos por trás da escola, entrar no pinhal, passar no cemitério e pensar em entrar nele (ainda não o fiz)… Uma rotina que me anima sempre no cansaço, um prazer solitário que hoje partilhei com a fantasia dela.
Não chegámos a conhecer-nos. É provável que ela não tenha sabido da minha existência. Nunca houve nada de mim nela. Agora há algo dela em mim. Quando somos tocados por fantasmas é para sempre. Talvez seja por isso que vivemos e morremos: para manter a cadeia de contágio. É nela que a humanidade acontece.


15.11.2022

 

Fotografias de fotografias: uma maneira de perder alguma da precisão da imagem impressa, de quebrar a ilusão dessa presença falsa. Mas, também, de desacertar contas com o olhar, com o imaginário, com a obsessão. Muitas imagens me aprazem, mas algumas ocupam-me verdadeiramente. Estas são as imagens que não representam, mas assombram. E — como fantasmas livres e loucos que são — também possuem. E não se trata de uma possessão pacífica. Elas penetram-me, invadem-me, dilatam-me, por vezes estilhaçam-me para me refazerem outra vez. No confronto com tais imagens, neste jogo de apropriação constante (mas sou eu que me aproprio delas, ou são elas que se apropriam de mim?), não sei se torno as imagens mais ou menos minhas, nem sei se me torno mais ou menos m/eu.


07.02.2023

 
Há sempre algo de trágico nas narrativas centradas em vidas não vividas. Sejam quais forem as razões que impedem estes homens e estas mulheres de viver as suas vidas (elas variam de autor para autor: há dias em que sou mais tchékhoviano, outros em que sou mais jamesiano, outros, ainda, em que sou definitivamente huysmaniano), está sempre em causa uma desadequação, um desarranjo, uma cisão, uma incompatibilidade entre o sujeito e a vida, ou, talvez mais especificamente, entre o sujeito e o viver. O que não significa que ele não viva — que não ame, que não sofra, que não sonhe nas suas noites brancas. Vive, sim, a vida invisível, aquela que não é quantificável, que muitas vezes não é sequer qualificável.

Não é, por isso, de estranhar que várias destas personagens encontrem nas imagens, e particularmente nas fotografias, a sua morada possível. Perante a imagem, não sentimos essa insuficiência ontológica, essa dívida para com a vida ou o viver. Não somos confrontados com a vertigem horrífica do nosso corpo e do corpo do mundo. As imagens oferecem-nos um espaço e um tempo que podemos frequentar. Podem conter violência, mas não são violentas. Elas afectam-nos, é certo, mas não constituem uma ameaça, porque elas vivem uma vida invisível e incorpórea que, sendo singular e característica, é análoga à nossa.

Na fotografia, uma das flores que ofereci à minha mãe neste aniversário. São amaryllis — uma glória da forma e da beleza — que, como acontece a tudo o que é vivo, vão fenecer em breve.


14.02.2023

 

Vive ao pé da morte.


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Paulo Faria — Judeus não há, alemães também não (Polónia, 2023)