Anna M. Klobucka — Ver uma mulher (sobre Maria José Praia)

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A obsessão espectrofílica com o fantasma que na sua razoavelmente longa vida (1893-1973) usou de nome completo Maria José Borges Coutinho de Medeiros Sousa Dias da Câmara, nome artístico Dias da Câmara e nome habitual Maria José Praia, começa com esta imagem.

Uma mão desencarnada segura o retrato da jovem Maria José, bela e ciente da sua beleza; outras imagens da sua juventude no álbum comprovam a identidade e o carisma desta filha mais velha do segundo Marquês da Praia e de Monforte. Tirada em casa, a fotografia apela, no entanto, ao sentimento desfamiliarizante de unheimlich, uma inquietante estranheza, afastando o conforto familiar do recolhimento (daheim) em casa (at home) indiciado pela legenda.

Nos escassos resíduos da existência, tão privilegiada quanto heterodoxa, de Maria José Praia que persistem ainda no mundo dos vivos, mais de cinquenta anos depois da sua morte, abundam os sinais fantasmagóricos. Não se trata, ou melhor, não se trata apenas, da convocação dos espíritos através da fotografia, à maneira de Barthes em Câmara Clara, embora este seja o ponto de partida comum para qualquer prática de espectrofilia. Mais hermeneuticamente útil para a evocação de Maria José — mulher que ao longo da vida amou (várias) mulheres — seria a figura de lésbica-fantasma imaginada por Terry Castle em The Apparitional Lesbian (1993), ensaio propulsionado pelo diagnóstico de que a cultura ocidental tem processado a existência lésbica por “uma espécie de máquina de desrealização: insira a lésbica e veja-a desaparecer” (6; tradução minha). Mas não será este o lugar para tal demonstração: o desejo espectrofílico pede uma imersão gratificantemente submissa ao invés de uma racionalização eficaz e controladora.

Casada em 1920 com um banqueiro, Maria José ocupou-se em produzir descendência — três filhos no espaço de três anos, com pouca documentação visual preservada — mas já na segunda metade da década de vinte as imagens multiplicam-se e complicam a decifração do seu percurso.

A legibilidade da fotografia à esquerda — Maria José e o marido, José do Espírito Santo Silva, elegantes, a passear descontraidamente em Paris — contrasta com o mistério e o cuidado da foto de estúdio tirada em Bad Kissingen, na Alemanha. Terá sido este o “premier amour” de Maria José que ela conta à amiga, escritora Virgínia Victorino, ter reencontrado na Suíça em fevereiro de 1932? Mas não: a candidata mais provável será a mulher, igualmente impossível de identificar, que surge como objeto de obsessão visual da dona do álbum.

O romance que está por escrever sobre esta página poderá inspirar-se numa novela que já existe: Ver uma mulher (Eine Frau zu sehen), escrita por Annemarie Schwarzenbach em 1928, mas só encontrada e publicada em 2008 (com tradução portuguesa em 2019). Local do romance: Saint Moritz; período: 1926-1932; tema: l’amour fou entre mulheres. E não é que Maria José conheceu mesmo Annemarie, segundo a inscrição desta no álbum de autógrafos daquela?

O reencontro das duas podia repetir-se mais vezes, dada a intenção de Annemarie de regressar a Lisboa, sempre como correspondente de jornais suíços durante a Segunda Guerra Mundial; mas a sua morte inesperada, aos 34 anos, menos de seis meses depois de ter visitado a casa de Maria José em Sintra, cortou este prospetivo enredo. Da relação de Maria José com a mulher alta de olhar penetrante que terá sido o seu primeiro amor — identificada apenas como “Thea” em algumas legendas — também resta pouco, complicando a tarefa espectrográfica. É muito mais abundante, porém, o registo de uma outra relação, na qual o amor louco só parece ter esmagado uma das partes, Ana “Aninhas” de Gonta Colaço (1903-1954), escultora, filha da poetisa Branca de Gonta Colaço e do pintor Jorge Colaço.

A paixão durou o suficiente para Aninhas e Maria José montarem um atelier de escultura partilhado, uma exposição conjunta em Lisboa, em maio de 1931, e um projeto de exposição coletiva anual das artes, o Salão dos Artistas Criadores, que apenas se realizou uma vez, em janeiro de 1932. Mas em fevereiro, desde St. Moritz, Maria José já se queixava a Virgínia Victorino das cartas maçadoras de Aninhas (“Ma légitime, tu parles toujours en ma légitime et tu ne sais pas, tu ne peux pas savoir à quel point elle a le pouvoir de me barber, même de loin, avec ses lettres toujours pareilles, toujours larmoyantes...”).

Aparentemente só três das cartas “sempre parecidas, sempre choronas” de Aninhas ao seu amour fou estão preservadas, provavelmente por nunca terem chegado a ser entregues, ou talvez por a entrega solicitada (pela mãe, Branca, sempre cúmplice dos amores da filha) ter sido recusada.

Escritas em francês — para evitar serem lidas por olhos não autorizados, seguramente — e cientes da assimetria insuperável entre quem não ama mais e quem não consegue largar o amor, as cartas são, elas mesmas, convocações do espírito da relação morta, com os seus nomes ternurentos (Joe-Darling-Love, Annie-baby) e protestações da persistência do que deixou de existir.

Definitivamente divorciada ainda no mesmo ano de 1932, Maria José/Joe mudou-se para Tânger — onde podia viver bem com menos dinheiro e longe dos olhares maledicentes, também da família, que a censuravam, segundo explicou a Virgínia Victorino — e continuou a acolher amores, ou melhor, amoras (como lhes chamou Natália Borges Polesso). Algumas estáveis, outras passageiras, sobretudo quando Tânger se tornou um dos destinos dos refugiados — e das refugiadas — da Segunda Guerra Mundial. Quem terá sido o fantasma chamado Irene que escreveu no álbum da sua anfitriã, em julho de 1940, em polaco, “Amo os teus olhos / Amo-te – sempre / Tu e só – Tu –”?

E com esta aparição suspendo, para já, a séance. Adeus Joe/Maria José, Aninhas, Thea, Annemarie, Virgínia, Irene e tantas outras que perduram ainda no fundo dos arquivos por explorar — ou até só nas memórias, cada vez mais distantes e vagas — mas que carecem apenas de uma paixão espectrofílica para serem convocadas, pois, como escreveram outras manas naquelas cartas portuguesas não só novas mas infinitamente renováveis, “não deixa a paixão de ser a força e o exercício o seu sentido”.

 

Nota da autora: Neste escrito foram aproveitadas as seguintes fontes de informação e imagens: coleções particulares; o espólio da família Colaço na Biblioteca Municipal Tomás Ribeiro em Tondela; o posfácio de Francisco Vale em Annemarie Schwarzenbach, Ver uma mulher (Relógio d’Água, 2019); e a tese de mestrado de Ana Pérez Quiroga, Ana de Gonta Colaço, 1903-1954 – Escultora (Universidade de Évora, 2006).

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