Paulo Brás — O Fantasma do Género [Llansol]

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Torno-me uma mulher, belo,
ela torna-se um homem, forte.

Augusto Joaquim, «O poema do Nómada do entresser», 1974

 

para Odete e Cru, The Cursed Assembly

 

1.

Antes de A crucificada de José Gil, em 1983; antes de a obra de Maria Velho da Costa seguir um percurso lógico do feminismo e da reflexão sobre violência e papéis de género para considerações sobre diversidade de género e dissidência sexual; antes dos ensaios, em 1982, «Homossexualidade, mito e magna mater» de Natália Correia e «Como quem não quer a coisa» do Colectivo de Homossexuais Revolucionários; antes da peça «A confissão» de Bernardo Santareno, parte de Os marginais e a Revolução, em 1979, antes do livro Travesti de Paulo da Costa Domingos, no mesmo ano, ou do poema de Amor geométrico em que Manuela Amaral escreve «Mendel esqueceu-se que / pode haver / um ovário / pendurado / no coração do homem / ou um testículo / semeado / na cabeça da mulher»; antes das obras de Luís Miguel Nava, Isabel de Sá, Al Berto e Rui Nunes; antes mesmo do manifesto «Liberdade para as minorias sexuais» do Movimento de Acção Homossexual Revolucionária, a 13 de maio de 1974; Depois de Os pregos na erva de Maria Gabriela Llansol é o livro que eu gostaria que voltasse para assombrar o cânone da literatura queer em Portugal.

Terminado em 1972, o ano das Novas cartas portuguesas, é o segundo título de Llansol, como o título indica, depois da estreia em livro em 1962. Interessa-me por ser um livro-de-transição, entre Os pregos na erva e O livro das comunidades (o livro-fonte, o segundo «primeiro livro»), tal como Mudança é um livro-de-transição entre O caminho fica longe e Manhã submersa para Vergílio Ferreira ou Manual de pintura e caligrafia é um livro-de-transição entre Terra do pecado e Levantado do chão para José Saramago. Editado na coleção Contradizeres da Afrontamento, no Porto, Depois de Os pregos na erva é composto por três textos, «a que a forma livro atribui a ilusão de continuidade» (1973: 2). Mapeando esses «10 anos de trabalho textual» entre a primeira e a segunda publicação, são aí compilados, por ordem inversa à cronológica, «E que não escrevia», escrito em Lovaina entre 1968 e 1971, «Um texto decadente», começado em Lisboa em 1964 e terminado em Lovaina em 1968, e «O estorvo», escrito em Lisboa entre 1961 e 1963 (contemporâneo, em data e estilo, do primeiro livro) e recompilado em Cantileno de 2000.

O design da capa e do prefácio da primeira edição (e única, à data) merece ser tido em conta: a capa branca com um retângulo cinzento central para as informações de título e autoria (apesar de nos depararmos depois com a estranheza de o título no exterior não coincidir inteiramente com os títulos no interior) e o prefácio ocupando a página 2, o interior da capa, com texto de margem a margem, «que cerca o rectângulo» branco no centro, também descrito no prefácio como «ânus ou vagina, rectoangulosa». Só esta provocação já bastaria para uma leitura queer do livro, mas Llansol deixa claro o que pretende fazer: «Podia ficar em estátua. Em menino ou em menina. / Mas não. / Antes, morte da natureza (da concepção burguesa do seu mundo eterno), violentar dos sentidos de estátua, não inscrição de diferença dos sexos, pois que, em português, um deles é estátua de sentidos mortos» (o sublinhado é meu). Pensando que o arco temporal definido para o livro (de 1931, o nascimento de Llansol, a 1972) coincide com a ditadura militar portuguesa (1926-1933) e o Estado Novo (1933-1974), o seu tratamento da história à revelia do género ganha relevância.

 

2.

«Um texto decadente» (que, entre os vários títulos que teve, chegou a chamar-se «Não tiveste horror do útero») foi escrito, segundo nota de Llansol, com o mote bíblico da viagem de Tobias e um anjo que ele achava ser um homem. A descrição da anatomia do arcanjo Rafael é digna de nota: «passa sonhando consigo feito homem cortou as asas para que pingue sangue e o rasto seja o pénis que não tem (leva a mão ao pénis apertando-o) e a sede vá atrás dele matar-se numa gruta aérea onde habita e está de pé sem nenhum espaço» (1973: 157). Há na tradição da representação pictórica de anjos a aproximação a um organismo que se multiplica, não se reproduz (ser vivo assexuado), e que pode assumir a aparência de um ser humano, mulher ou homem, de expressão andrógina (mesmo se a androginia usa o grau zero do masculino, como um eunuco). Na verdade, a antropomorfização (sem asas) é só uma das transformações previstas pela Bíblia, havendo ainda anjos híbridos de traços animados (olhos, asas) e inanimados (rodas, minerais preciosos): o monstro da totalidade, ser tudo em potência – daí o seu interesse no campo do não-binarismo de género.

Esta narrativa afigura-se-me igualmente fluida. Na passagem adiante, por exemplo, há a imagem de um quarto de sombras com um fantasma à entrada, mas a voz que fala não nos diz se se trata do quarto de uma casa, de um hospital ou de uma sala numa escola, de uma representação do limbo ou da caverna platónica, de um tabernáculo da catedral de Toledo ou do túmulo onde Cristo espera a ressurreição, assim como não sabemos se fala uma criança (Jesus? Tobias?) nascida ou por nascer e quem é o fantasma (médico, anjo, falo, sol — palavras masculinas em português). Quem lê só se pode agarrar ao texto. E nele as marcas gramaticais de género da voz vão oscilando entre masculino e feminino, quer porque, num monólogo contínuo a várias vozes, não sabemos, a cada momento, nome e género de quem fala, quer porque o discurso pode desrespeitar a concordância em género, quer porque a forma como o texto está pontuado pode fomentar a estranheza (não sabemos se se faz pausa em «sinto uma vaga comiseração por mim / mesmo vontade de explicar o que quero dizer» ou em «sinto uma vaga comiseração por mim mesmo / vontade de explicar o que quero dizer»):

Como, de resto, é evidente, não tive intenção de ser concebido; dei comigo já sentado no quarto das sombras com uma perspectiva de descida aos infernos diante dos olhos, ninguém estava à altura de receber-me, nenhuma relação humana era exacta para tornar-me equilibrado e justo, ou útil; no quarto das sombras a luz entrava a jorros por duas grandes janelas de sacada mas eu habitava aí, não ultrapassava o limiar do corredor que possuía uma passadeira de oleado negro e brilhante porque, diziam, havia um fantasma acocorado à entrada e que, afinal, nada mais era do que, a certas horas do dia, o volume rutilante do sol no oleado; ficava, pois, limitado por uma proibição a essa sala (…); e, sobretudo, às vezes, sinto-me de outro sexo, como neste momento em que toco com a cabeça o seio de minha mãe (…) não tenho pés estou pousada na terra pelas mãos e o meu afecto quer descobrir racionalmente (...) sinto uma vaga comiseração por mim mesmo vontade de explicar o que quero dizer e de marcar espaços (...) apoiada nas mãos só as mãos eu simplificada no trabalho que produzo eu manualmente outra (...) agora é diferente venho mudada (161-3)

 

3.

«E que não escrevia (auto-análise: “Não sou capaz de dar vida a uma sociedade nova. Mas posso destruir os mortos.”)» começa assim:

Como, de resto, é evidente, não tive intenção de ser concebido. Dei comigo já sentado no quarto das sombras com uma perspectiva de descida aos infernos diante dos olhos, ninguém estava à altura de receber-me, nenhuma relação humana era exacta para tornar-me equilibrado e justo, ou útil; no quarto das sombras a luz entrava a jorros por duas grandes janelas de sacada mas eu habitava aí, não ultrapassava o limiar do corredor que possuía uma passadeira de oleado negro e brilhante porque, diziam, havia um fantasma acocorado à entrada e que, afinal, nada mais era do que, a certas horas do dia, o volume rutilante do sol no oleado; ficava, pois, limitado por uma proibição a essa sala. (1973: 7)

Passaram três anos do último texto e vemos reutilizado o excerto com diferenças mínimas de pontuação, mas, em vez de o anterior se transformar e ser substituído, ambos são publicados num mesmo livro (com o anterior depois do posterior, nem serão lidos pela ordem cronológica que respeitaria a génese).

Entrando no plano da autoficção (com referências ao pai e a uma empregada), mas com narração ainda no masculino, nem sequer é preciso mencionar homossexualidade, incesto, doença mental, aborto e a escrita sobre «O príncipe feliz» de Oscar Wilde para ler este texto sob uma lente queer. Como prometido, a indefinição mantém-se: desde a variação entre «as pregas da minha saia ou as bainhas das minhas calças muito largas» (8) a «se fosse um homem gostaria de viver entre dois seios se fosse uma mulher havia de manter-me em equilíbrio instável de pé» (14-5), conclui-se «tenho pena de não ser um homem      a minha vida contigo voz de minha mãe é o confronto de não ser um homem» (15). Experimentadas aqui, as figuras da «irmã uterina» e de um «rapaz feminino» voltarão a aparecer na obra de Llansol; veja-se ainda, em livros posteriores, o estranho caminho traçado na transição, em género e espécie, de Florbela Espanca para Fernando Pessoa (Florbela é o heterónimo feminino de Pessoa, mais tarde Mansuetude, Infausta ou Oitava) e de Fernando Pessoa para Vergílio Ferreira (do falcão nasce um ovo chamado Evora, associado a Évora-sobre-o-mar).

O texto é continuamente interrompido por diários e um livro do bebé («Aqui, presa do próprio nome, o sujeito é presa do “Livro do Bébé” em que confluem, para desejar e querer no lugar dele, um hábito social da classe burguesa (ideologia), a montagem do álbum, adiante descrita, e as notas do relator, o pai, centro dos fantasmas da família e dos seus fantasmas.» [54]). Este último, concretamente, é uma chave de leitura importante para o quarto das sombras enquanto espaço seguro para o não-binarismo de género. O «fantasma acocorado» (já lido de forma patriarcal) não está assim tão distante da voz que fala. Começa a perceber-se o quanto o exílio neste espaço a protege não só do que a espera (os outros), mas também daquilo que quererão obrigá-la a tornar-se. A palavra «acocorado» reaparece, de resto, em «Acocorado no chão, os pés assentes na pintura do homem adulto um tecido sanguíneo com ramificações e inervações» (15). E se o fantasma que me espera for o meu eu futuro? O limiar espacial é também temporal. Como na passagem em que se sonha o arcanjo: tocar o corpo do outro é também tocar o meu.

Na noite da ceia de Natal, perguntei à Maria Amélia pode-se mudar de sexo de menino em menina de menina em menino e ela respondeu-me sim, talvez amanhã. A saia de rendas da Maria Amélia estava deitada na cadeira e o veludo do manto na minha cama; disse-me vai dormir como um rei. Da minha mão a deslizar sobre ele, para além da dobra do lençol, nasceu o sonho

quando da rua aquela música subia até mim. Sentia dores. A cidade em que eu dormia ignorava-o e, se lhe atirava uma esmola para a bandeja, fazia-o por piedade; não compreendia a doçura de lamentos, o céu é para os pássaros, a terra é para os mortos e sexo, o meu, para quem? (...) Na última tarde do sonho, (…) cheguei a julgar, adormecido, que pousava o braço dobrado na salva de prata das esmolas. Acordei a chorar Maria Amélia Maria Amélia e quase me atrevia a dizer-lhe não mudei de sexo, só me masturbei

é a lua

são dois seios, é o desejo de estar ao seio de outra maneira (46-7)

 

4.

Em 1994, mais de vinte anos depois de Depois de Os pregos na erva, Llansol refere novamente a passagem do quarto das sombras no último capítulo «Uma história humana» do segundo volume de Lisboaleipzig, intitulado O ensaio de música. Não é uma transcrição completa como antes, apenas uma alusão, mas aprofunda um ponto interessante em relação ao que parece estar a formar-se à nossa frente. Conversam uma criança («em quem vê a mulher e o homem» [2014: 358]), um cão e o texto: «E confidencia-lhes que / quando chegaram ao tempo, o tempo já os esperava numa enorme ansiedade de que viessem, apesar de não saber como era ser-se homem, nem o homem sabia como era ser-se homem e mulher, nem ao que vinha. / Como, de resto, é evidente      dei comigo no quarto das sombras,      / soletrou o texto.» (357). A palavra «ansiedade» é aqui essencial: uma ansiedade cultural em relação ao «eterno retorno do mútuo», os papéis socialmente construídos que devemos representar para uma vida «equilibrada», «justa», «útil», ansiedade apenas adiada no quarto das sombras em que o sonho da metamorfose ainda é possível sem confronto com o Poder.

– Sempre tivemos a impressão de que viemos para um desconhecido, mas um desconhecido vivo. (...) Sempre tivemos o sentimento de estarmos a ser observados por essa ansiedade.

– Mas não é verdade – interrompe o cão. – Ninguém vos está a ver, nada vos espreita.

– Eu sei, mas há uma sensação do estreito que não nos larga, e que sempre existiu – corrige a criança. – É como se estivéssemos anichados no quarto das sombras a olhar para o fio de luz que corre pelo corredor,      e perguntássemos, no nosso íntimo, o que tínhamos vindo fazer.

(…) [R]eplica o cão. – O Homem é como nós: nasceu daqui e aqui vai morrer, como tudo...

– … a menos que se torne outro... – interrompe o texto. Mas ninguém o ouve (...)

– Quando, por instantes, fazemos coincidir no nosso corpo a minha ausência com o teu inomeado,      posso ir do quarto das sombras, em direcção      ao fio de luz. Saio do quarto, e vou até ao corredor. Deito-me no chão encerado. Fecho os olhos. E, à medida que a luz os incendeia, abro lentamente o olhar, e vejo o sol através das cortinas de uma das janelas grandes da sala de visitas. (357, 359)

Ainda não nascemos e, porque assinala a presença ou a ausência do pénis numa imagem espectral, a cisheteronormatividade já espera por nós: decide-nos o nome porque sabe de que género seremos, estreita que roupas vestiremos (consoante tempo, cultura e classe social), com quem nos relacionaremos e que características psicológicas teremos, dominantes ou sob domínio. A literatura fantástica ensinou-no-lo: a norma teme menos o desconhecido do que a destruição das estruturas a que se habituou. Llansol, no entanto, procura «o encontro inesperado do diverso» na subversão dos papéis de género, por uma visão não-binária da realidade («Para o romance canónico, a natureza é um neutro (...). Para o texto que escrevo é o terceiro sexo.» [2000: 215]). Por exemplo, Os cantores de leitura, o seu último livro em vida (e no seu caso faz sentido dizê-lo assim), ensaiará um sistema de partículas, duplos e contextos, três formas de existir textualmente: a cada partícula um duplo, a cada «ambo» um contexto (vejam-se ainda as relações a três, potenciadas pela bissexualidade ou pela introdução de um terceiro elemento — humano, animal, vegetal, figurativo — no casal).

 

5.

Passam seis anos, estamos agora em 2000 e é publicado Onde vais, drama-poesia?:

eu deslumbro-me quando o tempo se suspende,

e me permite parar a contemplar o espaço sem tempo. Como, de resto, é evidente, não tive intenção de conceber-me. Dei comigo já sentada no quarto das sombras com uma perspectiva de descida aos infernos diante dos olhos. Ninguém estava à altura de receber-me, nenhuma relação era exacta para me tornar equilibrada, ou útil. No quarto das sombras a luz entrava a jorros por duas grandes janelas de sacada mas eu habitava aí, não ultrapassava o limiar do corredor que possuía uma passadeira de oleado negro e brilhante porque, diziam, havia um fantasma acocorado à entrada e que, afinal, nada mais era do que, a certas horas do dia, o volume rutilante do sol no oleado. (2000: 11-2)

Vemos que é uma citação quase integral da versão mais recente de Depois de Os pregos na erva: o masculino passa a feminino, a pontuação é atualizada, «relação humana» abre para «relação» (a obra já nos vinha preparando para isso) e «justo» desaparece. Onde, todavia, o primeiro texto continuava pela descrição de um espaço, este continua assim:

Descobri que se, em vez de me concentrar na sombra do corredor, me deitasse de costas a olhar a mancha rutilante, o meu olhar poderia realizar o caminho inverso da luz e pousar no ramo mais alto da árvore e aprender com esta a produzir clorofila – a primeira matéria do poema.

Essa postura, no entanto, tornou-me malcriada. Eu deveria crescer na direcção do corredor, e estava a crescer na direcção da árvore. Estive quase a dar ouvidos a essa voz humana que insistia que eu estava a crescer mal. E, de facto, era uma postura estranha. O meu corpo permanecia deitado,

no chão do quarto,

enquanto o meu olhar aprendia a fazer poemas. Com o tempo, como seria aquele corpo, separado da poesia, ou com esta apenas a brotar do seu olhar? Tanto mais que, lá do alto, o poema (...) quase nada via do que se passava em baixo, à volta do seu corpo, não sentia a dor que este sentia,

a sua falta de espaço e de movimento,

a pressão exterior que o impelia a entrar no corredor e ser menina, (12)

 A novidade do pormenor da árvore (sobre o quarto que sabíamos vertical pelo ponto de vista de descida-aos-infernos) aproxima graficamente a descrição do quarto das sombras à de um útero, com as trompas sobre o feto, o corredor do colo e a entrada da vagina. Com isto em mente, é importante voltar à imagem do «fantasma acocorado». Quando lemos «fantasma» como a imagem-objeto que substitui aqui e agora a ausência do outro, costumamos falar do ponto de vista da pessoa viva em relação à pessoa morta (numa linearidade cronológica, a pessoa que partiu para o outro lado). Este parágrafo ajuda-nos, no entanto, a recentrar a questão no lugar de quem fala (o outro — o monstro, o doente, o fantasma — é sempre uma construção do eu). Se quem fala aqui é alguém dentro do útero em relação a alguém que está fora (mesmo que seja o seu eu futuro), o discurso ainda é sobre o que esteve no mesmo estado que eu e transitou para o seguinte: já não da vida para a pós-vida (a morte), mas da pré-vida (a gestação) para a vida. Para esta voz (ou para alguém que falasse do além, como, de resto, o cinema já fez: kino eye moves time backwards), o fantasma é quem vive.

 

6.

Para alguém como Llansol que construiu uma obra com «uma tendência para estudar, por escrito, o nascimento», como nos dirá em Amigo e amiga (2006: 36), e não a maternidade (que, de resto, pode e deve ser lida nesta obra sob uma lente transfeminista que separa o ser mulher do poder e do querer gerar descendência), o foco acaba por ser desviado para a transição em si, sempre que há uma passagem de um estado a outro (mesmo que não definitivo, contínuo). Já nos contos do primeiro Os pregos na erva, encontrávamos gradações de luz e sombra, pessoas que adormecem e despertam, às vezes para morrer nesse dia, e muito andar entre espaços: travessias. Em Depois de Os pregos na erva, alguém cantava «eu sou filha de uma égua, não nego a parenteira; fui nascida e baptizada, minha terra é a fronteira» (1973: 75; o sublinhado é meu). Exílio e fantasia (imagem mental, de que o fantasma pode ser uma concretização possível) são conceitos interdependentes, quer do ponto de vista da identidade, quer da sexualidade (não entrei aqui por considerações possíveis sobre erotismo e «fantasmes» no sentido francês de «fantasias sexuais», mas o «sexo de ler» llansoliano aí está).

Compreende-se assim que, na obra de Llansol, o tempo não possa ser linear (e, por isso, pessoas, animais e objetos de diferentes séculos estejam ao mesmo nível e consigam comunicar enquanto figuras). Ora, está tudo ligado — destruindo-se a linearidade do tempo, destrói-se também a base sobre a qual assentam os géneros historicamente contextualizados, os géneros humanos, claro, mas também os géneros literários. Tendo escrito romances (alguns organizados em trilogias), diários e livros de horas (ainda planeados por Llansol), não raro eles se sobrepõem: há futuros títulos de livros presentes em textos anteriores, páginas de diário que servem de prefácio a traduções de poesia e até expressões que encontramos simultaneamente em textos ficcionais e não-ficcionais (destruindo essa própria divisão). Mesmo que lida como uma obra que cresceu «estranha», à margem, porque, no entender da norma, escolheu ser «malcriada», quem a faz sabe que não há por que ter medo, a regra foi sempre uma abstração, o fantasma não constitui perigo, «nada mais era do que, a certas horas do dia, o volume rutilante do sol».

 

Referências

Maria Gabriela Llansol, Depois de «Os pregos na erva», Porto, Afrontamento, 1973.

______________________, Lisboaleipzig: O encontro inesperado do diverno / O ensaio de música [1994], Porto, Assírio & Alvim, 2014.

______________________, Onde vais, drama-poesia?, Lisboa, Relógio d'água, 2000.

______________________, Amigo e amiga: Curso de silêncio de 2004, Lisboa, Assírio & Alvim, 2006.

Augusto Joaquim, «O Nómada do Entresser»: Uma vida com o texto de Maria Gabriela Llansol, organização de João Barrento, Lisboa, Espaço Llansol / Mariposa Azual, 2021.

 

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