Bernardo Pinto de Almeida — A ordem do fantasma: o sentido da invocação na Poesia e na Pintura de Mário Cesariny
Para a Emília
Eu sou um bicho religioso, acho que sou, e o homem é-o! E talvez eu
transfira isso para o terreno da poesia. A poesia não é fazer bonitos, rimar
bem, dizer: Ah! Tão bonito!” Não digo que seja sempre, mas, em mim, é uma
invocação ao contrário da evocação. Na evocação tu lembras um tempo passado,
na invocação tu rezas ao tal deus desconhecido, que é para ver se Ele aparece.
Mário Cesariny
History is what hurts.
Frederic Jameson
Estamos já cansados de dizer, e de ouvir dizer, que Mário Cesariny é o nome de uma das Vozes maiores de toda a história da Poesia portuguesa. Como sempre, de muito repetido o argumento fica flácido, incapaz de significar mais do que o mero slogan para badanas de edições antológicas, ou para o epitáfio que a cada um calha fazer para conforto próprio, a menos que transporte, como deve, uma significação ao mesmo tempo profunda e acessível, isto é, situada ao alcance de quem se disponha a mergulhar no seu universo singular e dele sair transformado por aquilo que a poesia pode e deve agenciar.
O que faz a sua diferença, o que na sua voz fere o tempo, seu e nosso bem como o de uma longa tradição, e assim faz história, ou seja, a razão da sua imensa claridade e, ao mesmo tempo, da permanência continuada da sua poesia numa margem obscura — de onde poucos, nas décadas da segunda parte do século XX, o chegaram a resgatar, mesmo ainda durante a sua vida — foi justamente que a sua voz tenha sido, quase sempre, mesmo se não sempre, marcada pela presença estranha, ao mesmo tempo irracional e arcaica, de uma dimensão invocativa que a poesia moderna portuguesa e sobretudo as suas fontes e regimes de legitimação — a universidade, a crítica, o jornalismo — suportavam mal, por razões que os próprios tinham dificuldades em entender. Foi assim que, recentemente ainda, muitas das leituras críticas mais frequentes de entre as que procuraram aproximar a obra se envolveram na querela, quanto a mim pouco fecunda ou interessante, de que o facto de se reclamar de Pascoaes mais do que de Pessoa, seria consequência de uma vontade canónica de ocultação da sua aspiração a tomar o lugar do segundo, seguindo assim o protocolo teorizado por Harold Bloom (O Cânone Ocidental) dentro do qual cada grande poeta procuraria tomar o lugar ocupado antes por outro e vencê-lo, numa luta semelhante da disputa do herói freudiano no processo da morte simbólica do pai.
Com efeito, no que toca à relação com os dois grandes poetas fundadores do Modernismo em Portugal, Pascoaes e Pessoa, como muito bem se entende da antologia do primeiro que Mário Cesariny organizou — como se da sua própria poesia se tratasse, incorporando-a, desse modo, na sua bibliografia — foi à longa tradição de que aquele vinha que ele igualmente quis pertencer. Refiro-me à que praticou o poema como lugar de uma fala invocatória em que convergem, ou mesmo são chamados à presença, espaços e tempos diferenciados, vozes e imagens transportadas desde muito longe e muito fundo, muito mais, portanto do que da tradição evocatória, em que se prende a lírica, que mesmo se por vezes lhe deu alguns belos poemas, não foi a dimensão dominante da sua poesia. Tal como a Pascoaes e depois aos Surrealistas, o que realmente pareceu interessar-lhe foi justamente a capacidade de fazer do poema (e também da pintura) um lugar convocatório, o espaço de um trazer à presença as vozes desses que ainda falavam com a dele desde um longínquo passado — Gilgamesh, Haman, o mago do Norte, Novalis, muitos outros — sejam todos esses de que se sentiu próximo no seu tempo e cuja fala interrogou através da sua: Artaud, Buñuel, António Maria Lisboa, Genet, Octavio Paz, Laurens Vancrevel, Francisco Aranda e tantos outros, todos eles convocados desta sorte a colaborar (senão mesmo a participar, por presença quase directa) na sua própria obra.
Também assim nas várias antologias — as de Novalis e Teixeira de Pacoaes sendo as mais exemplares — nos parece chegar a adivinhar formas e processos da sua própria obra, já que tão profundamente fez seus os versos e meditações desses amigos de que quase se diria perderem a sua pertença primeira para integrarem uma nova no interior desse palco aberto da sua obra. Mas assim, ainda, nas próprias traduções (Uma Cerveja no Inferno — Une saison en enfer, de Rimbaud, por exemplo) em que o processo tradutivo inscreve, de facto, no seu mais profundo, um processo apropriativo que autoriza mudar os títulos e o lugar dos termos e dos nomes e que amplia por vezes os sentidos em novas direcções, sem que se mostre nisso qualquer pejo em o fazer. Tal a criança, que apropria por não distinguir tal coisa como o direito de autoria, também o poeta, por vezes evocando o que fizera já Ezra Pound na apropriação de inúmeras tradições alheias, de Confúcio a Dante, faz cintilar por entre os seus versos os versos de outros, ou por dentro dos de outros os seus, reconhecendo assim a sua pertença íntima a uma comunidade. Deste modo se acentua, na poesia mas também na plástica, esse sentido da comunidade que Emília Pinto de Almeida já referiu, colocando pela primeira vez o problema[1].
E assim, uma vez que a obra própria perde, deste modo, o sentido anterior da autoria desde sempre baseada na nomeação — “Haverá gente com nomes que lhes caiam bem/ Não assim eu./ De cada vez que alguém me chama Mário/de cada vez que alguém me chama Cesariny/ (...) Como assim Mário como assim Cesariny como assim ó meu deus, de Vasconcelos?” (A Antonin Artaud)[2] — para aceder agora à voz comum de uma tribo[3]. Por isso a autoridade, que Cesariny reclamava substituir à autoria, se pode tornar assim equivalente de uma ampla liberdade (sob a palavra, tal como na Libertad bajo palabra/ figura hermosísima del dios em el hombre, referida na Carta para Octavio Paz[4]), já que por ela se exprime a voz mais autêntica de uma outra nomeação que, de facto, está desde sempre profundamente inscrita na própria linguagem, signo da mais remota origem, e já que toda a linguagem pressupõe um ter sido dita desde sempre como se lembra no poema “Colapso”: “Tudo está/ eternamente/ escrito/ (Spinoza)”[5].
Por essa mesma razão se entende, de resto, que tenha tido tão forte, mesmo se nem sempre evidente, a influência que de facto veio a ter em outros Poetas que se lhe seguiram, como Herberto, Luiza Neto Jorge ou António Barahona, para citar apenas alguns que igualmente encontraram nesse outro sentido para o poema a razão maior da génese dos seus próprios. A influência, assim, em casos como os que citei, não é pois propriamente de ordem formal como antes simbólica, uma vez que se prende com chaves de entendimento do que é o próprio do poema e, mais em geral, a Poesia. Adiante se mostrará um pouco como, também na sua pintura o que se procura é afinal da mesma ordem, embora por meios diversos. Desse modo a fala do Poema procura um outro alcance.
Num poema de um livro aparecido cedo na cronologia da literatura portuguesa do século XX e na sua — Manual de Prestidigitação (1956) — intitulado “A Arte de Inventar os Personagens” pode ler-se: “Pomo-nos bem de pé, com os braços muito abertos/ e olhos fitos na linha do horizonte/ Depois chamamo-los docemente pelos seus nomes/ e os personagens aparecem.[6]”
Este poema parece a coda do que imediatamente se lhe segue no livro — “A Arte de Ser Natural com Eles” — anuncia a aparição, de então em diante decisiva, do que chamarei a ordem do fantasma: “Senhor Fantasma, vamos falar”. Esta ordem do fantasma iria percorrer, doravante, toda a obra (plástica como poética) e tornar-se mesmo no seu modelo constitutivo ao dar à invocação o sentido de ser o elemento ao mesmo tempo restituidor e transfigurador da presença do fantasma, que é assim chamado para auxiliar à cerimónia do poema de que o Poeta é o mago: esse “jovem mágico das mãos de ouro/ que a remar não se cansa muito” que aparece claramente nomeado em Pena Capital[7] e cuja figura breve e solar se confunde com a outra, sua irmã, do prestidigitador anunciado e figurado no livro anterior. Como escreveu Giorgio Agamben, “A história da humanidade é sempre uma história de fantasmas e de imagens, porque é no interior da imaginação que a fractura entre individual e impessoal, múltiplo e único, sensível e inteligível toma lugar. Ao mesmo tempo, a imaginação é o lugar da recomposição dialéctica desta fractura.”[8] Ora o que creio é que em Cesariny tanto a figura do Poeta invocador como a do prestidigitador, são justamente as que se mostram capazes de fazer aparecer, invocando-a graças à imaginação, a recomposição dessa essencial fractura que, em algum momento tomou lugar, entre o múltiplo e o único, o sensível e o ininteligível, e que teria ocorrido no interior da própria linguagem em que estes se teriam cindido.
O poeta-prestidigitador, o jovem mágico chama até si, através do acto invocativo próprio do poema, personagens e fantasmas, figuras aladas e misteriosas de vários tempos e lugares ou até esse “deus dos cemitérios pequenos” que aparece no poema “A um rato morto encontrado num parque”. Pois é também pela invocação que se desorganiza a presença tutelar do histórico e mesmo do geográfico, para que se venha fundar, em seu lugar, uma nova ordem temporal e uma nova geografia, próprias do poema, que acolham a possibilidade de religar entre si tradições muito diversas. De certo modo, também esse “nosso dever falar” referido no célebre e justamente celebrado poema “You Are Welcome to Elsinore”, consiste num dever de invocar, quer dizer, de trazer de volta até nós e à nossa língua, esse verbo esquecido, todavia incólume, que se diz na linguagem do poema desde a mais remota origem.
Aí se dá o encontro maior entre Cesariny e Pascoaes, poeta por excelência da invocação, mas também com Rimbaud, Novalis ou Ramon Llull. E esta é, como já sugeri para trás, uma compreensão de ordem propriamente filosófica: nela se comporta uma ideia de tempo (neste caso particular disso que designamos de tempo da criação) que comporta já em si um carácter messiânico. Num extraordinário poema (Voz numa Pedra) raramente comentado, escreveu o Mago: “Não adoro o passado/ não sou três vezes mestre/ não combinei nada com as furnas/ não é para isso que eu cá ando/ decerto vi Osíris/ porém chamava-se ele nessa altura Luiz/ decerto fui com Ísis mas disse-lhe eu que me chamava João/ nenhuma nenhuma palavra está completa/ (...)/ nada está escrito afinal.” [9] O que nos permite compreender como na sua poesia — mas na verdade em toda a poesia que pertence à ordem mais alta da invocação — se procura que kronos dê lugar ao Kairos restituindo a presença viva e sensível de um tempo messiânico, no sentido benjaminiano de termo — e tal é porventura a sua maior contribuição ao pensamento do Ocidente — em que o tempo se liberta da estrita pertença a um único sentido histórico e corrente e, sobretudo, a uma qualquer concepção de sentido historicista (hegeliano) para se abrir enfim a outro tempo comum, em que se acede ao que é já do fim da história e em que o convívio entre as vozes dissolve o sujeito e, ainda mais, o sujeito individualizado num ego, para que ascenda um sujeito colectivizado numa experiência extensiva do próprio ser convertido agora em um puro ser para os outros. Ao mesmo tempo que, através de tais vozes, podemos chegar a escutar a voz de um outro povo, de um povo a vir, graças às quais se diz outra medida do humano que, através de uma tal experiência, acede colectivamente à ordem da criação participando assim do que seria a tarefa divina.
Essa presença da invocação, portanto, teve sempre um propósito muito claro, e é mesmo inscrita de um sentido político oculto: forjar os meios do reencontro com essa língua arcaica, que seria própria e propícia à instauração de uma outra história, que, em certo momento, teria sido recalcada, expurgada do dizer, através de uma opressão exercida sobre a fala do povo. Num texto radical e notável datado de 1975, lido como Comunicação ao Congresso da A.P.E. no período revolucionário que sucedeu ao 25 de Abril de 1974 — recentemente recuperado por António Cândido Franco na revista A Ideia — exclamava o poeta:
Esta usurpação da linguagem ao serviço duma classe exploradora e desvirtuadora das outras classes foi em Portugal especialmente nefasta, dado o caminho fradesco e caudilhista que continuadamente praticámos.
É costume dizer-se, pondo olhos em alvo, que Camões foi um genial poeta por, entre outras cousas, ter criado o português moderno, o português que hoje falamos. A verdade é que o Renascimento e a invenção das Pátrias foi obra dumas quantas famílias, apostadas em deitar pela borda fora todas as outras, digamo-lo de passagem. E a verdade é que, frente ao monumento linguístico dos Lusíadas a burguesia portuguesa, de rarefacção em rarefacção literosa, nada pôde acrescentar-lhe, sempre ao contrário da linha oral popular que não cessa de evoluir e involuir os seus vocábulos. Frente aos Lusíadas, a burguesia portuguesa passou a mandar a filharada aos retóricos, aos preservativos, e nunca mais aconteceu mais nada que parisse e gostasse senão, quatro séculos depois, esse outro livro extraordinário, a Mensagem, de Pessoa, extraordinário na manipulação da língua e extraordinário no reaccionarismo da emblemática. Deste caminho andado, também desde os cronistas até à actualidade, é juiz bastante o Teixeira de Pascoaes que nos diz: Devemos substituir Os Lusíadas, esse Livro de Linhagens, pelos Autos populares de Gil Vicente. [10]
Assim entenderemos igualmente o facto de, em pleno contexto revolucionário, o Poeta se ter dirigido aos camaradas de ofício para reclamar o direito a essa língua de há muito recalcada, a língua que transportaria ainda a voz autêntica do povo, e que ele reclamava revivescer para que nela se viesse retomar a presença da sua voz original. Onde pressentimos igualmente a dimensão profunda, que anteriormente referi, de uma ideia política igualmente central em toda a obra de Pasolini, seu próximo, nos romances como nos ensaios, nos poemas como nos filmes, e que tão bem se exprime nestes versos[11]: “Eu sou uma força do passado./ Só na tradição reside o meu amor./ Venho das ruínas, das igrejas,/ dos retábulos das aldeias abandonadas dos Apeninos ou dos Pré-Alpes/ onde viviam os irmãos.[12]”
Ora em toda a sua Poesia, tal como na vasta obra plástica iniciada ainda nos finais da década de quarenta — que tanto tardou em ser reconhecida no seu valor extraordinário, o que melhor do que ninguém poderei testemunhar — a questão passou sempre por aqui. Tratou-se, em ambas, de proceder à criação dos meios que permitem o trazer à presença o que é dessa referida ordem do fantasma: vultos que caminham perdidos no tempo, pelo que ressurgem incessantemente quais aparições, senão mesmo como assombrações, justamente porque a sua inscrição histórica os não revelou devidamente no seu próprio tempo e que, pela sua chamada invocatória se actualizam ou, num sentido mais pleno, se revelam, para se mostrarem a uma nova luz de compreensão e de entendimento em que se torna presente a própria terra do poema[13]. Obras como “Retrato possível de Casanova (1997)”, “O pranto de Tuparamaru (1978)”, “Lancelot du Lac (s/d)”, “Amadis de Gaula (S/d)” ou “Osíris é um deus negro (2002)”, manifestam essa capacidade, que é própria da invocação, de operar o transporte no tempo de figuras cuja existência teve lugar em outras histórias e geografias mas que, nesta nova aparição, ganham enfim isso a que Benjamin chamou, antes de todos, a revelação do seu verdadeiro tempo histórico[14].
Nesse sentido, e em jeito de conclusão, diria que essa grande obra poética final — O Virgem Negra — herdeira que é dessa rica tradição da literatura de cordel de que o Poeta fez uma notável antologia, constitui na verdade um evento da maior importância, já que assinala a possibilidade de, em plena euforia comemorativa pessoana, pensar agora o Poeta (que o Mago não deixou jamais de admirar como “poeta menor”) numa nova dimensão, finalmente religada, da sua própria humanidade — a da sempre recalcada sexualidade — de repente reunida, senão mesmo restituída numa feérica encenação sadiana de uma orgia que toma lugar num falanstério fourieriano.
O poema cria, deste modo, uma espacialidade singular e delirante, por assim dizer, ao mesmo tempo que uma concreção de tempos jamais ousada antes na história da literatura desde Sade, que se propõe acolher a comunidade imaginária em cujo interior as figurações heteronímicas pessoanas, sempre em tensão, se viriam reunir na apoteose de um bacanal linguístico. Onde finalmente se emparelham num movimento em que igualmente se realiza o reencontro entre a poesia portuguesa do século XX com essa única real tradição viva, em que foi beber até à mais absoluta embriaguez, da literatura de cordel pré-Camoniana. Ou seja, uma vez mais o poema se torna, deste modo, invocação dessa antiquíssima voz arcaica, cumprindo o desígnio anunciado por Pascoaes, de “substituir Os Lusíadas, esse Livro de Linhagens, pelos Autos populares de Gil Vicente”.
[1] - Cf. O outro e todos os outros do outro em que se pode ler: “A hipótese de uma “criação em comum” salta à vista num livro como Primavera Autónoma das Estradas (1980), onde os poemas que redigiu convivem, sem distinção, com fragmentos textuais de Artaud, Victor Brauner, Peter Weiss, entre outros – Cesariny chegou mesmo a chamar-lhe “meu livro, meu-e-de-toda-a-gente” Cf. Catálogo da exposição O Castelo Surrealista de Mário Cesariny, MAAT, Lisboa, 2023.
[2] - Pena Capital (1956) in Mário Cesariny - Poesia, Assírio e Alvim, Lisboa, 2017, org. P. Cuadrado, p. 212.
[3] - Foi Pierre Clastres quem nos ensinou já que os índios Tupi Guarani, quando interrogados sobre o seu nome exclamavam o nome da própria tribo. Cf. A Sociedade contra o Estado, Afrontamento, Porto, 1975 (nossa tradução).
[4] - Idem, p.357.
[5] - Idem, p.156.
[6] - Idem, p. 143.
[7] - Idem, p.187.
[8] - in Cf. Nymphs, ed. inglesa Seagull Books, 2013, p.60-61.
[9] - idem, p. 292.
[10] - Comunicação de Mário Cesariny ao I Congresso da A.P.E. [Maio, 1975] In A Ideia — revista de cultura libertária, II série – ano XLIV – vol. XXI n.º 84/85/86 – Outono de 2018. Direcção de António Cândido Franco, pp. 245-246.
[11] - Como antes escrevi, “Mas é também assim que se vai aos poucos esclarecendo o lugar próprio da sua poesia e da sua intervenção, da sua defesa, tantas vezes apaixonada e intransigente, de uns quantos autores, como Pascoaes ou António Maria Lisboa, no que poderia ter sido a invenção de uma outra tradição, que nos faltou, ou que faltou ao menos ao nosso autor, onde se pudesse sentir em vestes menos apertadas, como as que foi encontrar, radicalmente numa leitura original da pintura da sua amiga Vieira da Silva: “Interessa-me, mais, intrigou-me, como pode intrigar uma visão que, no silêncio total de que se reveste, grita incessantemente, obstinadamente, a sua descoberta, a sua força de destruição e reconstrução, intermináveis, do mundo. Realmente, não me ocupa um trabalho de crítica de arte, embora aqui ou ali por lá se atravesse, mas a observação, e os caminhos de relação de uma visão do mundo que, para mim, se inicia no século XII italiano, passa aos primitivos flamengos, se oculta durante os séculos clássico e romântico, para deflagrar, com violência inaudita, e incauta realização na pintura de Vieira.”. Cf. “Prefácio” a Uma Última Pergunta - Entrevistas com Mário Cesariny, Documenta, Lisboa, 2020, p.24.
[12] - Pier Paolo Pasolini, Poesia in forma di rosa.
[13] - Como referi já: “Quadros mesa-de-pé-de-galo, pão chamadas para virem testemunhar coisas que se não sabiam, com a mesma liberdade de transversalizar o tempo ou de atravessar o tempo em tempos vários, que todo o poema — e toda a experiência poética — comporta. Muitos tempos no tempo único da pintura-poesia, todos sinalizando a mesma verdade essencial de comunicação de um outro conhecimento do mundo” Cf. Mário Cesariny – A Imagem em Movimento, Caminho, Lisboa, 2005, em que se retoma um texto anteriormente publicado em paulo da Costa Domingos, Judicearias, Frenesim, Lisboa.
[14] - “O que distingue as imagens das ‘essências’ da fenomenologia, é a sua marca histórica (...). A marca histórica das imagens não indica somente que elas pertencem a uma determinada época, ela indica, sobretudo, que elas não alcançam a lisibilidade senão numa época determinada. E o facto de chegarem à ‘lisibilidade’ representa, decerto, um ponto crítico determinado no movimento que as anima. Cada presente é determinado pelas imagens que são síncronas com ele; cada Agora, é o Agora de uma cognoscibilidade determinada. Com ele, a verdade está carregada de tempo, até dele explodir. (Essa explosão, e nada mais, é a morte da intentio, que coincide com o nascimento do verdadeiro tempo histórico, do tempo da verdade).”
Cf. Paris, Capitale du XIXème Siècle, edição francesa Ed. Du Cerf, Paris, pp. 479-480, (minha tradução).