Frederico Parreira — Na Fronteira

Tenho medo de descobrir que tenho algum bicho, disse-me René. Pediu-me que fosse com ele ao hospital. Nesse dia eu tinha de trabalhar. Ele acabou por ir sozinho. À noite, quando voltei, perguntei-lhe como tinha corrido. Não me respondeu. Refugiou-se no quarto durante três dias.

Quando finalmente saiu do quarto, foi para comer. Tenho tanta fome que podia matar alguém, disse-me René. Fiz-lhe ovos com fiambre e café. Comeu em silêncio. Depois eu fui para o trabalho. Quando voltei ele já não estava em casa. Não o voltei a ver.  

*

Hoje estive num hospital. Corredor branco, sala branca. Um hospital. A médica pediu-me que me despisse. Demorei quase um minuto a entender o que queria dizer.

Num hospital olho o meu corpo como se eu mesmo fosse médico. Distancio-me. Baixei as calças. Tirei a camisola. Tirei as cuecas. A médica tomou notas. Eu também.

*

Represento todas as falhas da minha família: não discutimos divórcios, não reconhecemos depressões. A doença não existe, existe a vida e depois existe a morte. Ontem jantei em casa dos meus pais. A minha tia Ana veio jantar connosco. A refeição demorou vinte e três minutos, já contando com o café. O meu pai chamou-lhe um táxi. Mal o carro desapareceu de vista a minha mãe ligou a televisão. Nessa noite dormi, pela última vez, na cama da minha adolescência. Fiz as contas aos livros que li nessa cama e quantas vezes me masturbei. Chorei quatro vezes, três por causa de relações falhadas, uma por causa de um amigo.

*

A parede é branca, ou suficientemente branca para parecer branca aos olhos dos visitantes. A sombra carregada que desenha um segundo relógio de parede acompanha o passar das horas, tal como os ponteiros fechados dentro da caixa de madeira. Na montra há garrafas de cerveja, garrafas verdes, dois desenhos coloridos e um escuro, quase preto, não mais do que um traço que atravessa o papel. Junto ao balcão, invisível aos olhares dos transeuntes, um homem recolhe a cabeça junto ao peito. O sino por cima da porta não toca senão duas vezes por dia. Lá fora, uma sombra carregada paira debaixo das copas das árvores. Desse espaço escuro chegam vozes, talvez das crianças que brincam lá longe, junto ao lago; ou de outras cidades, ainda mais longe, onde um homem, exactamente igual ao funcionário desta loja, guarda também o seu rosto junto ao peito.

*

Pensamentos que tive durante a viagem:

Se eu tivesse estudado matemática em vez de literatura espanhola.

Se eu tivesse beijado A. e não I.

Se eu tivesse nascido numa família com dinheiro.

Se eu tivesse uma altura de 184cm em vez de 172cm.

Se eu tivesse respondido acertadamente a uma pergunta, feita pela professora Margarida, em 1992.

Se eu tivesse saído de casa aos 18 anos, em vez de aos 28.

Se eu tivesse tido um irmão ou irmã, em vez de ser filho único.

Se eu tivesse visto o filme Le Jour Où..., de Chantal Akerman, em vez do filme Titanic, de James Cameron.

Se eu tivesse estudado literatura espanhola em vez de engenharia informática.

Se eu tivesse visto o filme Matrix, de Lana Wachowski e Lilly Wachowski em vez do filme Matrix, de Andy Wachowski e Larry Wachowski.

Se eu tivesse dentes de leite até hoje.

Se eu tivesse nascido em 2045 e não em 1975. 

*

Procurei um postal para enviar aos meus pais. Encontrei o postal, mas não me conseguia lembrar da morada. Tive vergonha de lhes perguntar por telefone. Acabei por escrever o postal na mesma, embora não soubesse para quem ao certo. Depois mandei-o para o lixo.

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