Joana Meirim — Fantasmática americana
“Vamos à América!”, dizia o meu avô.
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O meu avô nasceu na Rua Washington e viveu toda a vida na América. Trabalhou mais de meio século em frente ao Hotel Ritz. O meu avô não gostava de comer, petiscava. Para mitigar a azia dos dias aziagos, o meu avô bebia coca-cola, comia gelados e falava noite dentro com os amigos americanos.
O meu avô não chegou a ir à guerra, mas estudou russo pelo manual A First Workbook of Russian, uma edição nova-iorquina de 1963. O livrinho tinha várias ilustrações de objetos e partes do corpo humano e estava apoiado no busto branco do Tolstoi, sentinela de uma larga estante semivazia.
O meu avô foi quase sempre para mim o avô da loja. Visitávamos a D. América, e no seu quiosque o meu avô comprava tabaco, uma mancheia de pastilhas elásticas e um pacote de sugus. O açúcar era ainda o sonho americano.
Depois da época das idas ao quiosque da D. América, eu deixei a infância e passámos a falar menos. Foi Alois, um germanófilo nascido a 14 de junho, que nos reaproximou e nos fez recuperar o tempo perdido.
Marcávamos encontros em Monsanto e neles falávamos invariavelmente de três temas: o estado da bílis, e secundariamente da atualidade política e da família.
O meu avô era militante da homeopatia — o xarope Pau d’Arco tinha-lhe curado uma úlcera. Eu, pelo contrário, tinha uma simpatia semiclandestina pela ortodoxia alopática. Na luta contra os fantasmas biliares, próprios ou alheios, o meu avô recitava mantricamente a sua bula para todas as ocasiões: “come papaia, bebe água carbogasosa (Vidago é sempre a melhor opção); se estiveres em apuros, toma Cholagutt.”
A política desatualizava-se facilmente e passávamos à família, que era tão-só um brevíssimo lamento pelo irmão bilioso, alguém que tinha vivido — imagine-se — sem ter ido à América, sem ter viajado ou conhecido países para lá de Algés.
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Um dia, porém, a memória de que tinha passado grande parte da vida na América embaciou-se. Talvez por isso me tenha revelado um último segredo: contou-me que tinha ido mesmo à América, mais do que uma vez e sempre de avião. Perguntei-lhe onde ficava a América e ele hesitou.
Com uma voz subitamente animada disse-me:
— A América fica nos Estados Unidos... Gostava de lá morrer. Vamos à América?
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And now, the end is near
And so I face the final curtain
Lisboa, 14 de junho de 2023