José Marmeleira — Fantasmas de um Verão

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Ainda não tinha 15 anos quando apareceram. Naquele mês, no Verão da Manta Rota, a maré raramente vazava e entre o mar e a areal formava-se um quadro, em forma de rectângulo, que ele podia ver, os dedos abertos, contra a luz do sol e o calor.

Não se lembra da primeira vez, se foi numa tarde ou numa manhã. Nunca lhes soube o nome, nunca lhes apanhou as palavras ou sequer a voz, nunca caminhou na direcção da água para lhes tocar. Àquela distância, separado pela areia, só escutava os sons coloridos do Verão e as imagens que a praia deixava fugir. 

Lembra-se dos movimentos graciosos da mais jovem. Os seus pés, delicados, quase quebradiços, só ao de leve pareciam tocar no chão. Os braços dançavam, entretidos num jogo que só eles conheciam. Cortado até meio, o cabelo volumoso da rapariga acariciava-lhe o rosto. E da cintura delgada desciam, suaves, as coxas fortes e douradas pelo sol. Entrara na adolescência com uma carnalidade cheia e inocente e a praia parecia acolhê-la e celebrá-la, oferecendo-lhe o rebentar das ondas e os gritos das crianças.

Embora não fosse tímida diante do mar, evitava os salpicos da água e da areia. Furtava-se à ansiedade das ondas e aos humores do areal molhado.  Passado tanto tempo, não tem a certeza se alguma vez a viu mergulhar. Talvez a tenha visto a jogar ténis de praia com um familiar. Quem sabe, a sorrir aos amigos das férias, a conversar à beira-mar enquanto passeava o seu fox-terrier.  Voltaria a ver na praia outras raparigas e em quadros aproximados. Mas dela, foi dizendo para si próprio, nunca teve um grande plano.

Lembra-se de alguns tons do quadro. O laranja pontilhado do fato-de-banho nos azuis do mar e nos amarelos da areia. O castanho do cabelo a encimar a cor de pêssego do pescoço, o branco do colar que rodeava o tornozelo. E outras cores que o Sol, ainda clemente, deixava brilhar. Nesse ano, a miopia ainda não o tinha castigado, conseguia observar e interpretar detalhes. A alegria da rapariga nunca era demasiado esfuziante, notava-lhe, por vezes, uma certa candura na qual via traços de melancolia. E quando a tarde descia, descobria-a contemplar a areia ou o mar, a apanhar, distraída e só, as conchas que a maré trazia.

A segunda rapariga abeirava-se dos 20 anos. O seu cabelo soltava-se assim que tocado pelo sol e regressava do mar como se intocado pela água. Os ombros eram largos e elegantes, as pernas compridas pincelavam um torso ágil e arrebatado. Encontrava-a sempre com a família, em conversa animada. Não se recorda se teria namorado, mas raramente a viu só. Conversava muito, ela, com uma vivacidade discreta. Crê ter-lhe apanhado sorrisos, risos, gestos inesperados e rápidos que desenhavam movimentos no ar.

Assim que chegava ao areal, ela desnudava os seios com uma naturalidade desarmante. Fartos e firmes, pareciam florescer de pele curtida pelo sol, sós e alheios a qualquer olhar. A primeira impressão que lhe causava aquela revelação era uma estupefacção muda. Estaria, com certeza, diante de uma miragem, de um devaneio que o calor lhe trouxera, não de uma aparição verdadeira. Não era apenas a beleza harmoniosa dos seios jovens que o deixavam prostrado na areia, num espúrio sentimento de vergonha. Os gestos que antecediam o seu desnudamento não lhe traziam menor espanto: a chegada dela à areia, o desabotoar da saia que caía desamparada e, por fim, o levantar da pequena camisa, num movimento alegre e breve. Nesse instante, e sempre que a voltava a ver, depois de virar a cabeça na sua direcção, ela fazia parte daquela paisagem, daquela praia.

À medida que os dias foram passando, e o fim daquelas férias se perfilava no horizonte, foi deixando de as ver. A mais mulher foi a primeira a abandonar a praia, levada pela família. E nas últimas tardes daquele Verão, também a adolescente viria a desaparecer.

Hoje, passados tantos Verões, ainda as vê, às duas, naquele areal estreito, dentro do quadro, defronte do mar. Mas sempre que se levanta, para lhes tocar, escapam-se-lhe. Não lhes consegue ver os rostos. Os traços que as recortavam daqueles planos esbatem-se no horizonte, levadas pelo sol, o mar e a areia. Silhuetas sem carne, manchas coloridas, traços animados. Só quando recua de volta para a areia quente, julga voltar a vê-las, imagens na paisagem daquele Verão.

Não sabe se aquelas raparigas, tornadas imagens ou memórias de imagens, são espectros. A sua carnalidade permanece demasiado presente — ainda que tão distante no tempo — para lhes atribuir um nome tão sobrenatural. Escolheria outro não muito distante, o de fantasmas — expressão talvez mais genérica — que aquele Verão lhe deixou, dado o seu carácter quase ilusório, de aparição.

Porquê elas, raparigas sem nome, e não outras? Porque estavam na linha do horizonte? Porque correspondiam ao seu arquétipo do corpo feminino? A modelos da beleza que já havia assimilado, sem saber? Porque o seu olhar já estava construído, ao fim de anos de cinema, de horas diante das últimas páginas dos diários matutinos ou a folhear os volumes da História de Arte das edições Alfa? Porque, enfim, os nus femininos do cinema, da pintura, da imprensa o haviam corrompido? Feito dele um voyeur, voluntariamente amarrado à objectificação do corpo feminino? Ou porque lhe deram das mais bonitas tardes numa praia?

Naquelas férias, chegara à praia maculado com o opróbrio da reprovação no 9ª ano. O pai evitava-o com o silêncio da desilusão, e ele afastava-se de qualquer conversa de onde pudessem emergir “notas”, “negativas”, “passagem” ou “chumbo”. Nem a praia — de que não gostava particularmente — o expurgaria de tamanho e profundo falhanço. Não fosse a sensual meiguice daquelas duas raparigas, hoje fantasmas, não sentiria, como sentiu, o prazer de um recomeço e o da descoberta que chegaria.

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