Hervé Guibert — Holografia
Nunca me lembro de A Invenção de Morel, de Bioy Casares, com exactidão, e a história que conto pode acabar por ser outra história. Um náufrago chega a uma ilha cercada pela peste; vê ao longe umas pessoas em trajes domingueiros a dirigirem-se para uma casa. Ele segue-as à distância, observa-as. Antes de querer matá-las ou amá-las, ele quer conhecê-las. Entre elas encontra-se uma mulher muito bonita, que está sempre um pouco de parte, e que faz o mesmo passeio todas as manhãs. Ele esconde-se atrás das árvores, salta por cima das rochas; vê-la movimentar-se é, só por si, uma fonte de prazer. Um dia, por fim, ele quer abordá-la, mas a mulher não o vê, ele passa por ela, ela afasta-se. A água do mar, agitada pelas turbinas nas caves da casa, faz accionar uma estranha máquina, a invenção de Morel: ele contaminou os arredores da ilha para preservar a sua imortalidade. Todas estas personagens estão mortas, e, durante a sua estada nesta ilha, deixaram que fossem capturadas as suas imagens, as suas silhuetas, as suas actividades, antes de cometerem suicídio. O facto de os seus corpos serem capturados nesta fotografia multidimensional pode ter determinado a sua morte: assim que é fixada enquanto projecção, a pele desfaz-se em farrapos, caem as unhas e o cabelo. O náufrago assiste, impotente, ao abraço desta mulher, por quem se apaixonou, e de um dos homens, mas não se pode matar um morto, e ele só pode imiscuir-se entre eles sem ter nada em troca. Ele destrói as máquinas, então, e a água infiltra-se na casa, e as personagens morrem uma segunda vez, as fitas e as lâmpadas dos projectores são destruídas. O próprio náufrago era uma personagem encenada por Morel, e este apocalipse é apenas a apoteose de um espectáculo que se repete, como um géiser, a cada maré alta. Não, não é isto, o náufrago, por sua vez, é que activa a máquina para tomar o seu lugar ao lado da mulher na eternidade, todos os seus gestos são reproduzidos de acordo com os gestos dela, na esperança de que um dia um espectador venha e diga: eles amaram-se… A holografia deveria ser um luxo, como o embalsamamento ou a criogenização: a garantia de um duplo fantasmático.
De A Imagem Fantasma, trad. Amândio Reis. Lisboa: BCF Editores, 2023, pp. 68-69.