Luís Mendonça — Hervé Guibert e Roland Barthes e suas mães: a morte do autor depois da fotografia
O título deste texto obriga-me, desde já, a uma breve explicação: o que me proponho fazer nas próximas linhas é uma pequena explanação sobre um elo em falta nos estudos da imagem, uma afinidade por plenamente desencobrir entre Roland Barthes e Hervé Guibert, em particular, entre La chambre claire, livro publicado originalmente pela Gallimard, em 1980, e L’image fantôme, obra publicada pelas Éditions de Minuit, em 1981, e acabada de lançar em Portugal pela BCF Editores, com tradução e prefácio de Amândio Reis. Pretendo reflectir sobre o modo como estes autores simultaneamente se “afirmam” e “desaparecem” através de uma escrita que tem a fotografia como medium principal. E em que medida o “isto-foi” fotográfico e o tema da morte ou da espectralidade comunicam com a relação que ambos mantinham com as respectivas progenitoras. Posto de outra forma: em torno das figuras da mãe e enformados por uma certa ontologia negativa da imagem fotográfica (“depois da fotografia” ou, leia-se em inglês, “after photography” como ensaio sobre a possibilidade de uma escrita além da fotografia, no seu encalço e para lá dela, digamos assim), o que separa e aproxima Hervé Guibert e Roland Barthes entre si? Tenha-se como exemplo daquilo que os aproxima e distancia os perto de trinta anos de diferença e a distância física que fez deles, acima de tudo, amigos epistolares, quer dizer, fundamental e se calhar avisadamente “à distância”.
Antes de mais, gostava de começar pelo início da história da minha relação com Hervé Guibert, o corpus que, esperançosamente, poderemos, em Portugal, colocar no mapa dos estudos da imagem desde o advento da publicação de L’image fantôme no nosso país, mas também da realização da conferência “Hervé Guibert e Roland Barthes: escrita, fotografia, cinema e cultura queer”, que tive o prazer de co-organizar (com apoio do ICNOVA, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa [NOVA FCSH]) juntamente com José Bértolo (IELT, da NOVA FCSH) e Amândio Reis (CeComp, da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa), e a programação do ciclo da Cinemateca Portuguesa, “Hervé Guibert e Roland Barthes: Os Fantasmas do Íntimo”, largamente baseado na obra Roland Barthes’ Cinema do precocemente falecido Philip Watts (a quem presto a minha homenagem).
Essa “relação” — inibo-me de usar a palavra “paixão” ou “obsessão” — começou por via da fotografia, não da fotografia alucinada e detonada pela escrita pulsional que encontramos nas linhas de L’image fantôme, mas da fotografia realizada como objecto. O que me impressionou mais, numa primeira instância, foi a brancura e a claridade das suas imagens, que me remeteram de imediato para Larry Clark e para o seu Tulsa ou para as coreografias despidas, de uma luminosidade suave, quase lisa, de Francesca Woodman. Como se estas imagens vagas, oferecidas e por ocupar, viessem do território dos sonhos ou de um além-vida qualquer, sendo que parecem versar sobre um modo tribal de viver a juventude, topos onde a liberdade se descobre, ou se desencobre, numa espécie de teatro privado, muito secreto, feito de gestos e cumplicidades difíceis de discernir para quem olha “de fora”.
Em suma, as imagens de Guibert, na sua claridade diáfana, incensam um mistério qualquer que nos convoca para um paraíso perdido, mas não se trata este de um paraíso celeste ou místico, pois vigora no território semântico da fotografia de Guibert uma dimensão muito concreta (objectos, pessoas, sombras), que apela ao mundano, mesmo que a claridade diáfana nos remeta para uma outra dimensão qualquer. Esta mise en scène ablativa, extractiva e expurgada leva-me a pensar no neo-realismo como neo-cristianismo, presente nas entrelinhas do pensamento de André Bazin e aprofundado por Amédée Ayfre, na estética do silêncio teorizada por Susana Sontag ou no estilo transcendental desenvolvido e aplicado por Paul Schrader em Transcendental Style in Film e na “Man in a Room Film Trilogy” — como se fosse da ordem franciscana a organização destes quadros sobre santos ou “anjos exterminadores” que, na terra, e em privado, perigosamente brincam aos, ou brincam com, fantasmas. É a transparência falsa de um véu, é a brancura não pura do lençol da cama ou da camisa ou da palidez do rosto de Guibert o assunto que mais salta à vista no contacto “obtuso”, como manda Barthes no seu «Le troisième sens», com as suas fotografias.
Há toda uma palidez que o excita, como confidencia numa das passagens de Le mausolée des amants: Journal 1976-1991. Numa das suas observações em transportes públicos, onde costumava fixar os olhos nalgum outro passageiro capaz de suscitar desejo ou repulsa, ou seja, capaz de motivar o esforço da (d)escrita, confessa Guibert relativamente a um jovem que lê um livro em italiano no corredor de um comboio e passo a citá-lo no seu diário: “a sua pele é muito Branca, tal como gosto, tal como gosto sempre da minha pele e eu tenho vergonha da cor da minha” (The Mausoleum of Lovers, p. 256).
Em «Adjani ou La Vertu de L’Excès», texto publicado originalmente no Le Monde em 28 de Maio de 1981, Hervé Guibert escreveu um “retrato” efervescente de Isabelle Adjani, com quem quis filmar o seu primeiro filme e com quem desenvolveu uma relação tão devota quanto destrutiva. Guibert diz-se entre os homens que a amam. Porquê? “[P]orque ama Goethe, Flaubert, Dostoiévski, Edgar Allan Poe. Porque [ama] as paixões terríveis [e] a castidade inflamada” («Adjani ou la Vertu de l’Excès», in Articles intrépides, p. 132). Adjani representa a sua paixão louca pelo cinema e é, confessa, “o seu modelo de identificação feminina”. Descrevendo cada aspecto do seu corpo, sobretudo os olhos (de um azul límpido e distante) e o rosto, à maneira do célebre texto de Barthes sobre o rosto de Greta Garbo, nota Guibert: “É preciso voltar-me para a sua pele, de uma palidez e de um embotamento [matité] de um outro século: uma brancura que não é pútrida nem cadavérica mas que remete para a porcelana, para a lactescência” (Idem, p. 132).
Apesar de Adjani, ou de um certo fascínio exercido pela sua imagem – como “a virgem” –, esta é uma brancura infecta, mistura do divino e do eterno com o mais baixo, com o mais fútil, fátuo e profano, tal qual o diabinho que Guibert, em L’image fantôme, confessa – no confessionário que é a sua escrita – ter tido medo de poder surpreender na sua primeira imagem erótica – o desenho de uma mulher que exibia os seios uma vez puxada uma aba.
Ou tal qual a personagem Toby Dammit no filme de Federico Fellini em Histoires extraordinaires (1968), obra omnibus com contributos ainda de Roger Vadim e Louis Malle. Dammit é interpretado por Terence Stamp, o diabo de Pasolini em Teorema (1968). Teorema e Toby Dammit, dois filmes saídos no mesmo ano quente de 1968. Rosto pálido, intensamente branco, Stamp surge-nos na pele de Toby Dammit como este actor shakespeariano, em modo vampiro rocker, sucumbindo à tentação de celebrar um pacto com o Diabo para chamar a si as intensas luzes da ribalta. Mas a luz — nomeadamente do flash fotográfico dos repórteres — queima-lhe o rosto.
Dammit é uma personagem que seduz o olhar de Guibert, sendo o escritor um pouco como um vampiro diurno ou, no pólo oposto, como um santo cego, tal qual o Santo Hervé citado no livro L’image fantôme, para quem, porventura como toda a gente cega, ver é uma fonte de grande fantasia (The Mausoleum of Lovers, p. 298). Eis, enfim, Guibert, qual santo que se exprime em imagens de uma claridade ofuscante – a dita brancura infecta é o seu idioma principal ou mais expressivo. É uma brancura febril que o faz fotografar e que o faz escrever, que o precipita para a fotografia e o precipita para a escrita e que, finalmente, o empurra para a Morte.
No documentário Hervé Guibert, la mort propagande (2021), ficamos a saber que Guibert começou a escrever no início da adolescência, durante um período em que estava de cama, com febre alta. É a febre, esse “efeito” que empalidece o rosto, que nos permite levantar o véu sobre um mundo entre o nosso mundo, motivando muitas das visões ou alucinações convocadas, por exemplo, em L’image fantôme.
Claro que a principal mancha nesta brancura é a doença. O próprio falava da sua relação paradoxal com a sida que o matou: uma paixão intensa ao início e, depois, um desejo bigger than life ou um desejo bigger than death de se ver livre dela, de a expulsar, como que num vómito. Ele analisa a sida deste modo, num livro como À l’ami qui ne m’a pas sauvé la vie (1990): por um lado, extraordinariamente inquiridor, como o cientista de bata branca a analisar um tecido ou órgão humano; por outro lado, nas entrelinhas, furiosa e assustadoramente sensível e vulnerável. Guibert analisa e oferece, em holocausto, a sua visão sobre as pessoas e os objectos que compõem o mundo que o rodeia como faz com o próprio corpo logo nas primeiras páginas da sua obra inaugural, La mort propagande, escrita em 1977 quando tinha apenas 21 anos.
Aí, um corpo oferece-se, destruído, degradado, implodido, para ser performatizado ou filmado, no que é uma espantosa e até arrepiante premonição relativa à sua morte precoce, cerca de 15 anos depois, e ao único filme que nos deixou, exibido postumamente na televisão francesa, La pudeur ou l’impudeur (1992), em que precisamente, e cito-o agora no dito livro, ele obedecia ao mandamento inaugural: “[t]enham o meu corpo decomposto filmado, dia após dia” (Written in Invisible Ink: Selected Stories, p. 28). E depois escrevia, porventura dirigindo-se a um “eu” futuro: “esta performance, mais bela do que um filme de horror (...), vai ser excitante”. E é assim que dá ao leitor a notícia da sua própria morte: “Nas primeiras horas de 7 de Março, 19–, H.G. foi encontado morto, deitado numa poça do seu próprio sangue, no meio de uma divisão suja. A morte silenciou-o.” (Idem, p. 54). Mais à frente, descreve a autópsia deste corpo (o corpo já é uma “outridade” nesta altura), vítima de um suposto assassínio de cariz sexual, perpetrado por um amante ou amigo: “ele abre as minhas costelas com uma tesoura, ele acaba de levantar nervosamente o lençol que me cobre a cabeça, vê a cabeça e coloca um dedo logo debaixo do meu olho” (Idem, p. 65).
Guibert inscreve no corpus da sua prosa, de maneira maximamente visceral e violenta, o tema da morte logo nas primeiras linhas do seu primeiro livro – já nas entradas iniciais do seu diário, que começou a redigir em 1976 e só a morte concluiu, sentenciou: “É a morte que me move (esse seria o fim do livro)” (The Mausoleum of Lovers, p. 51). Esta obsessão pela imagem do seu corpo deitado, envolvido pelo lençol branco, sobre uma mesa em mármore, pronto a ser autopsiado ou a figurar a morte para o olhar indagatório, que o abre e inspecciona, é qualquer coisa digna de um realizador como Dreyer e, em particular, do seu filme Vampyr (1932), se recordarmos o momento em que o protagonista, interpretado pelo Barão Nicolas de Gunzburg, vê o seu próprio cadáver a ser transportado no caixão. Trata-se, enfim, de uma proposta, dirigida a nós, leitores, de encararmos a Morte como imagem, como um “eu-outro” reflectido no ecrã ou num outro espelho diabólico qualquer.
Assim, dir-se-ia que, apesar de pouco lido (foi republicado recentemente em inglês, em Written in Invisible Ink: Selected Stories, com tradução de Jeffrey Zuckerman), La mort propagande é um livro importante por definir um certo tipo de violência e crueldade tipicamente guibertianas e também, como vimos, porque já se encontra assombrado por múltiplas figurações da Morte – começando pela do próprio autor. E ainda por delimitar uma família importante de referências que sub-estruturam o seu pensamento e estilo de escrita.
Guibert terá enviado este livro, acabado de publicar, a três personalidades: o pintor Francis Bacon, que fez do estudo pictural do corpo, e de todo um catálogo de sensações, um motivo de articulação expressiva entre a fotografia – de Muybridge mas também recorrendo a fotogramas de filmes de Eisenstein – e a pintura figural, tal como entre a performance e o filme de horror; Michel Foucault, um vizinho e amigo cujos últimos dias foram relatados no livro À l’ami qui ne m’a pas sauvé la vie; e, finalmente, Barthes.
O filósofo estruturalista ter-se-á interessado pelo jovem escritor, tornando-se seu amigo epistolar. Numa das cartas trocadas, terá proposto a Guibert a redacção de um texto complementar a essa obra, que se haveria de intitular La mort propagande N.º 0. Segundo Guibert, Barthes disponibilizou-se a promover a republicação da obra, com o novo texto mais um prefácio da sua autoria, mas sob uma condição: que Guibert dormisse com ele.
Guibert não cedeu à chantagem e esse texto permaneceu por publicar até 1991. O texto-carta Fragments pour H escrito por Roland Barthes serviu de “resposta” a essa alegação feita em público por Guibert e, ao mesmo tempo, de extensão significativa, pessoal pois em jeito de carta sentimental, do recém lançado Fragments d’un discours amoureux (1977). Segundo o filósofo, ele não desejou Guibert, pois apenas interpretou ou performatizou que o desejava, quer dizer, jogou lúdica e perversamente com esse sentimento de desejo, porventura dentro do estilo insinuante e diabólico tão definidor do próprio Guibert enquanto escritor e “na pele” da sua primeira e mais obsessiva personagem.
L’image fantôme é uma obra escrita e imaginada pelo olho da memória, um livro sem fotografias, feito sem câmara, mas repleto de imagens. Uma compilação de erros, hesitações, acidentes e um elogio à insuficiência da fotografia face à escrita e à sua capacidade reparadora ou consertadora. Trata-se, outrossim, de uma obra atravessada, como uma espada, por um intenso e erótico sentimento de amor à morte, para citar um filme de Alain Resnais, L’Amour à mort (1984), em que a morte vem, irrompe, from within, vomitada pelo espírito e gerando o debate entre os vivos como um vírus intelectual. Uma forma de amar a morte que faz de L’image fantôme a sequela mais justa de uma obra de extraordinária auto-superação – de auto-ultrapassagem epistémica – como foi La chambre claire para Roland Barthes, que confidenciou no seu Journal de deliu como a descoberta da fotografia de sua mãe teve um efeito desbloqueador, simultaneamente elevando o sentimento de perda ao máximo e tornando-o suportável mediante a prática exorcizante da escrita.
Com efeito, a história que molda toda a experiência de escrita e leitura (de imagens) de L’image fantôme também diz respeito a essa figura pairante e autoritária: a mãe – a mãe como m/other, pegando no título de um grande filme de Nobuhiro Suwa. A mãe como um outro. E é a ela que, logo na página 19, da edição portuguesa, Guibert dedica uma história precisamente intitulada “A Imagem Fantasma”. Versa sobre a tentativa de captar a imagem de sua mãe, sem a maquilhagem ou a figura/máscara imposta pelo marido, à laia de um movimento de desembalsamamento libertário com vista a embalsamá-la final e conservadoramente como “imagem de pureza” conjurada na câmara escura. Fotografar surge, deste modo, como acto transgressor e edipiano, até porque Guibert usa uma câmara do pai, sem este o saber. Trata-se também de um gesto salvífico, por procurar salvar – guardar como re-garder – a imagem da beleza ocultada e sob o risco de extinção. Mas Guibert é tudo menos suave na descrição que faz desta tentativa. Leia-se esta passagem:
Há que dizer que me recusei a fotografá-la até então porque não gostava do seu penteado, que era artificialmente encaracolado e lacado, numa daquelas mises en plis horríveis que a minha mãe costumava fazer, alternando com as permanentes, e que embaraçavam o seu rosto, o enquadravam mal, o escondiam, o distorciam. A minha mãe era daquelas mulheres que se gabam de uma semelhança com uma actriz, Michèle Morgan, no seu caso, e que vão ao cabeleireiro com uma fotografia dessa actriz tirada de uma revista, para que o cabeleireiro, tomando a fotografia como modelo, reproduza nelas o penteado da actriz. Portanto, a minha mãe penteava-se mais ou menos como Michèle Morgan, que passei obviamente a odiar. (A Imagem Fantasma, pp. 19-20)
Narra o momento seguinte à fotografia – o seu desastre, quer dizer – da seguinte forma:
Mas tive de me render às evidências: não tinha colocado o rolo na câmara devidamente (não tínhamos? não me lembro), e ele soltara-se das pequeninas garras negras que o seguravam, que o faziam avançar, e eu tinha-o fotografado no vazio. Em branco, o momento essencial, perdido, sacrificado. (A Imagem Fantasma, p. 25)
Mais à frente, completa:
Aquele momento em branco (aquela morte em branco? já que se pode disparar «em branco») permaneceu entre mim e a minha mãe, com o poder silencioso de um incesto. (Idem Ibidem)
Por fim, nota:
Nunca mais a fotografei. E ela envelheceu, como eu havia pressentido. Num ano, dez anos. Ela permanecera uma mulher de quarenta anos. Ela tornou-se uma mulher de cinquenta anos. Sempre que a via novamente, mal conseguia olhar para ela: aquelas dobras que lhe beliscavam os lábios, que lhe endureciam a boca, aquele rubor imperceptível e aquela ligeira penugem que lhe cobria as bochechas eram motivos de repulsa. Tinha dificuldade em beijá-la. (Idem, p. 26)
Como se verifica na leitura destas passagens, o mundo da mãe tal como (d)escrito por Guibert desperta tudo menos sentimentos suaves, delicados ou condescendentes. Em certa medida, a relação destes dois autores com a morte, a sua e a representada fotograficamente (e ambos apreciam as manifestações de uma certa arte assombrada pela ideia de limite ou finitude), tem que ver com a relação que os dois vão manter com a possibilidade ou com o facto consumado da desaparição física de suas mães.
Resumindo, é a história do amor terno e profundíssimo de Barthes pela sua mãe, tal como descrito no livro de Hervé Guibert, L’image fantôme, que me ocorre quando penso sobre o que os une mas também sobre o que os separa. Pois esse “amor à mãe” em Barthes choca, violentamente, e a título de exemplo, com o que Guibert conta, nos seus diários, sobre a operação de remoção da mama cancerosa de sua mãe.
Relata Guibert que soube, antes da própria mãe, que o seio desta havia sido removido. Perante a notícia e a ignorância da mãe quanto à extensão da dita operação, Guibert nota o seguinte, não somente no seu diário como também na sua ficção auto-biográfica intitulada precisamente Mes parents (1986):
É primeira vez que lhe escrevo e acho atroz, depois do facto que tenha sido necessário que ela fosse amputada para eu atestar o meu amor por ela. Digo-lhe isso. Vou amá-la mais, que a amo mais, mas no dia seguinte penso com horror que isto significa: morre e amar-te-ei ainda mais, sabes. (The Mausoleum of Lovers, p. 208)
Noutra entrada, escreve: “O rosto inchado da minha mãe com cortisona, um pouco como um mastim inglês, mas eu odeio-a” (The Mausoleum of Lovers, p. 247) Numa das passagens mais duras do seu diário, que inclui também em Mes parents, chega a escrever sobre a mãe: “Sinto-me quase feliz quando ela diz que está a sofrer” (Idem, p. 271). Guibert surge, também e mais uma vez, como que ocupando o lado lunar ou, para usar uma analogia mais fotográfica, “o negativo” de um “protocolo compassional” que pauta a relação do escritor com o tema da senescência de sua mãe. E a maneira como tantas vezes Guibert confidencia o seu ódio aos pais, em particular, à mãe, é verdadeiramente um acto de violência estruturante dentro daquilo que é o fluxo acintoso da sua escrita. Por exemplo, refere-se ao pai, à mãe e à irmã, em La mort propagande, quando diz: “estes corpos que detesto” (Written in Invisible Ink: Selected Stories, p. 39).
Este amor/ódio (ficcionado?) aos pais, figuras de autoridade na sua vida, permite-nos encarar o tema da autoria em articulação com a ideia quase paternal ou maternal de autoridade, na sua escrita e fotografia. Como podemos caracterizar o estilo de Guibert? Diria que se consubstancia numa escrita fotográfica realizada em movimento de vai-e-vem, entre a vida e a morte, sempre com e para a morte, desde logo, a morte física, corpórea, do próprio autor, para quem, como escreveu na primeira página de La mort propagande, “o meu corpo é um laboratório” (Written in Invisible Ink: Selected Stories, p. 27). A violência que ele inflige a esse corpo, também infligirá ao dos outros, sendo, a meu ver, o principal outro a mãe (ou o pai) ou, como disse, o ódio aos seus corpos.
Resulta daqui, de toda esta experimentação com as várias escritas, da literatura, da fotografia e da própria árvore genealógica, um corpo desvelado/velado, violado e violador de onde advém, forçosamente, uma ideia instável de autoria. Aqui, o escritor dilui-se no próprio acto de escrever ou a escrita ilumina-se num espaço dedicado à invenção e à recriação do autor e do leitor, pretendendo-se induzir uma leitura activa que assuma um “corpo” em diálogo ou em reação à palavra mais crua e cruel e ao mundo (sentimental).
O famoso texto de Barthes «La Mort de l’auteur», publicado na revista Manteia, n.º 5, em 1968, e que deu algum brado e suscitou muitas interpretações precipitadas, merece ser trazido à colação. Não se trata, claro, de contrariar uma certa ideia de autoria como reflexo de uma produção artística pessoal ou “do íntimo”, mas de propiciar na escrita um espaço de encontro, o mais directo e frontal, com o leitor. É uma escrita participada, digamos assim, em que o autor – quem ele é, quem julga ser ou o que se propõe ser – importa pouco, o que mais importa é a sua escrita, para quem o “eu” é uma espécie de objecto de estudo ou uma personagem. Escrever sobre o “eu” de maneira quase desafectada, quase “neutral”, para usar um conceito caro a Barthes – esta parece ser a proposta que encerra La chambre claire. E também parece ser a proposta que molda L’image fantôme.
Cada autor, Guibert ou Barthes, constitui-se numa outridade mediante um contacto revelador com a fotografia, revelação não do “eu” mas de uma linguagem do “eu”. Por outras palavras, contacto revelador com a fotografia, uma fotografia não perfeita ou canónica (“banal”, como aquela que quis tirar a Barthes e a sua mãe, já lá vou), ou, como sublinha Guibert claire na sua crítica a La chambre, “uma fotografia que deixa o texto passar” («Roland Barthes et la photographie – La sincérité du sujet», in La photo, inéluctablement, p. 194 )... E “onde só a linguagem actua, ‘se performatiza’, e não o ‘eu’”, sublinha Barthes («The Death of the Author», in Image Music Text, p. 143) no dito ensaio.
O texto da imagem, esse événement, permite sempre aceder ao “eu como um outro”. É assim em Guibert, é assim em Barthes, é, a meu ver, assim em Brian Dillon (autor de Essayism e Affinities, keynote speaker da conferência que decorreu na NOVA FCSH) e, por exemplo, é assim em Annie Ernaux, só para juntar mais dois nomes à constelação auto-ficcional after photography. Trata-se, enfim, de uma forma de aniquilar, se não total, pelo menos parcialmente, a presença do autor numa escrita pessoal mas profundamente anti-narcisista. Pois é uma escrita adversativa: “contra o eu”, aspirando ao lado de lá da morte, esse “grande outro”.
Se virmos o Guibert-escritor-narrador-personagem como um sequestrador, por exemplo, ao jeito da personagem de Terence Stamp em The Collector (1965), de William Wyler, eu diria que, independentemente de lhe chegar ou não o dinheiro do resgate, ele não deixará ninguém vivo no fim. Nem ele mesmo. “Fantasia da desaparição: já que ninguém me quer raptar, eu rapto-me a mim mesmo”, escreveu no seu diário (The Mausoleum of Lovers, p. 298).
Há um momento de captura (ou rapto) da imagem, em L’image fantôme, que constitui a mais perfeita assunção da ligação umbilical a La chambre claire, lançado um ano antes, em 1980 – nesse mesmo ano, Barthes morre, após ter sido atropelado por um carro em Paris. Demoremo-nos um pouco na história de Guibert sobre Roland Barthes, “o escritor”, e a sua mãe, intitulada «A fotografia, o mais perto possível da morte», título que me remete tanto para Robert Capa como para La Rochefoucauld, ao ensaiar a possibilidade de uma proposta indecente contida no acto de fotografar mãe, filho e a Morte... bem de perto.
Descreve Guibert:
Um dia, escrevi-lhe uma carta para lhe dizer que queria fotografá-lo com a mãe, uma vez que era a ela que ele dedicava todo o seu tempo e o seu afecto, uma vez que era ali, em primeiro lugar, que se mantinha a forte relação. A fotografia podia ser simples e banal em si mesma (...) podia até ser tecnicamente falhada, mas em todo o caso seria forte. Era a fotografia, a única possível para mim, naquele momento, de R. B. Não tive resposta (...).” (A Imagem Fantasma, p. 171)
Continua: “Tive medo que aquela carta ficasse para sempre entre nós como uma mancha negra, um arrependimento, um passo em falso” (Idem, p. 172). Como se a mera pergunta tivesse, em certa medida, exposto, de maneira quase pornográfica, pelo menos para a sensibilidade barthesiana, um certo desejo, egoísta, imoral e necrótico, de fitar, de guardar e de se galvanizar ou mesmo de se excitar perante a morte iminente da mãe — a morte como tara, como fetiche, mas aqui era a morte de alguém que representava o mundo para Barthes.
Barthes não publica a imagem de sua mãe em La chambre claire precisamente por ela não representar nada além de um — como diria Siegfried Kracauer — amontoado de coisas num manequim oferecido ao consumo desatento de um qualquer spectator. Havia qualquer coisa sagrada – descobriu logo ali, Guibert, quer dizer, bem antes de La chambre claire — na imagem da mãe para e em Barthes — digamos que, para um bom estruturalista, ela, a mãe e a sua imagem, era a trave mestra da sua existência ou, enfim, “a estrutura principal” do seu trabalho de escritor.
Escreveu Guibert, no seu diário, de maneira cifrada, como lhe era habitual, mas creio poder estar a referir-se a “B de Barthes”:
A suposição de uma transferência após a morte de B.: não seria o único destinatário, mas um destinatário transitório, entre outros: esta tarde trabalho no meu livro sobre fotografia e tenho momentos em que me sinto como que estando a ser levado, duplicado, habitado por algo que não é eu mesmo. (The Mausoleum of Lovers, p. 119)
O fantasma de Barthes possuindo o corpo de Guibert para produzir L’image fantôme? Uma pergunta que só serve para promover a especulação ou o delírio, mas também estamos aqui para isso, espero eu.