Carla Baptista — A doença como fantasma
Os gregos acreditavam que Delfos era o umbigo do mundo e estavam certos, se tomarmos a Grécia como o centro do mundo. Delfos não podia ser mais grego: convive com o maior vale de oliveiras ancestrais do país, as águas azuis do golfo de Corinto e o Monte Parnasso. A escritora galesa Jan Morris sentia a Provença quando via “as oliveiras e as lagartixas, as compridas sombras de verão, as cigarras com os seus cantos estridentes, os cheiros do vinho, e os girassóis cabisbaixos nas suas fileiras”. Todas essas coisas existem em Delfos. E ainda as cabras pretas que Sophia de Mello Breyner fotografou na primeira viagem à Grécia, em 1963, envoltas em “cheiro a resina a mel e a fruta”. E, claro, o Templo de Apolo, destino de milhares de crentes que, entre os séculos VIII e II a.C., percorreram o caminho sagrado para escutarem os oráculos proferidos pelas sacerdotisas. A ciência moderna ajudou a compreender as descrições antigas sobre a forma como estas mulheres interpretavam os sinais divinos e os transmitiam em transe, de forma ininteligível ou enigmática. Plutarco, um sacerdote de Delfos que viveu entre 46-120 d.C., mencionou o “delicado perfume” do pneuma, um gás alucinogénio que subia por uma fenda até à cadeira trípode onde a pitonisa se sentava para o inalar. Escavações geológicas realizadas nas décadas de 80 e 90 do século XX revelaram a presença de falhas submersas no Golfo do México, numa área de calcário betuminoso, que produzem gases leves de hidrocarboneto (metano e etano). O etileno tem um cheiro agradável. Os estudos pioneiros sobre anestesia, desenvolvidos a partir de 1911 pela médica norte-americana Isabella Coler Herb, descobriram que uma mistura de 20% de etileno causa inconsciência, e concentrações mais baixas provocam um estado de transe. Em 1923, administrou o anestésico cirúrgico etileno-oxigénio, revolucionando a história da medicina, pelo menos na perspetiva dos doentes: foi possível operar sem causar um sofrimento atroz. Os antigos métodos, praticados desde a Antiguidade por médicos egípcios, gregos, árabes e chineses, incluíam a utilização de plantas como a Esponja Soporífera (uma mistura de Ópio, Beleno, Atropa e Mandrágora), a Cannabis, e outros bastante duvidosos, como o estrangulamento parcial, pressionando a veia jugular ou as artérias carótidas até à inconsciência, altura em que o cirurgião intervinha, ou a concussão cerebral, golpeando a cabeça do doente com um pedaço de madeira com força suficiente para o fazer colapsar, mas sem provocar (idealmente) fratura de crânio. Delfos foi, e continua sendo, uma experiência, mesmo para aqueles que não buscavam as profecias ou viveram já no tempo dos romanos, quando a atividade religiosa entrou em declínio. Platão deixou em vários dos seus Diálogos (Alcibíades e Xenofonte) o testemunho de como a frase “Conhece-te a ti mesmo”, gravada a ouro no pórtico de entrada do templo de Apolo, impressionou vivamente Sócrates, que dedicou a vida a tentar cumprir o desígnio que o deus da beleza e da razão legou à humanidade. O desenvolvimento da Anatomia enquanto especialidade médica corresponde ao desejo literal de conhecer por dentro o corpo humano. Em 1760, o príncipe Raimondo di Sangro, um influente patrono de cientistas e artistas, ele próprio inventor e alquimista, encomendou dois modelos anatómicos a Giuseppe Salerno, construídos sobre esqueletos humanos, um homem e uma mulher, com os ossos conectados por uma rede de veias e artérias enrijecidas. A mulher estava grávida e tinha um feto inserido na cavidade do ventre, que podia ser aberta, mas esta peça foi roubada e perdeu-se. O crânio das duas estátuas tem portinholas que se abrem, revelando o cérebro metálico. Fazem parte dos tesouros da Capela Sansevero, em Nápoles, e a sua perfeição anatómica foi conseguida à custa de sofrimento humano. A principal teoria é a de que estes dois corpos foram sujeitos a um processo conhecido como "plastificação" ou "metalização humana", que envolve injetar substâncias na corrente sanguínea de uma pessoa enquanto ela ainda está viva. Vários testes usando espectroscopia infravermelha revelaram que as veias foram expandidas por uma substância metálica, possivelmente mercúrio, acrescida de fibras de seda, tratadas com cera de abelha, permitindo a preservação do sistema arterial, das vísceras e da musculatura. A ética que hoje guia a medicina é incompatível com estas práticas, testemunhos dolorosos dos horrores praticados sobre pessoas vulneráveis, mas até ao século XIX os estudantes tornaram-se melhores cirurgiões graças à existência de máquinas anatómicas. O mesmo desejo apolíneo — “conhece-te a ti mesmo”, ao qual Sócrates acrescentou “e conhecerás o universo e os deuses” — continua a impulsionar a criação de modelos anatómicos, agora através de realidade imersiva, inteligência artificial e visão de computador. A investigação sobre o cancro é uma das áreas mais investidas da Medicina, mas alguns dos procedimentos permanecem arcaicos. O método de localização de tumores mais utilizado para guiar a cirurgia do cancro de mama é, literalmente, espetar arpões metálicos dentro da mama. Na Fundação Champalimaud, são usadas injeções de carbono líquido inoculados com uma agulha que produzem uma tatuagem na pele e no tumor a remover. Estes métodos sinalizam o centro da lesão, mas são imprecisos na marcação das margens. Já existem computadores com a potência de cálculo necessária para mapearem tumores de forma não invasiva e produzirem imagens virtuais, mas falta integrar esta tecnologia nos blocos operatórios. Quando me deitei na cadeira do laboratório do projeto MetaBreast — Metaverse for Breast Cancer Surgery, em curso na Fundação Champalimaud, para colaborar com a equipa que recolhe imagens 3D da superfície do tronco das pacientes para criar “fantasmas” precisos dos tumores, pensei como o desafio societal que é tratar o cancro exige o regresso ao espírito holístico do Renascimento europeu, por sua vez inspirado no helenismo clássico. A invasão dos tecidos pelas células neoplásicas depende da interação de tantos fatores — internos, externos e contextuais — que só uma abordagem multidisciplinar, capaz de analisar big data, pode reconhecer os padrões para modelar, simular e antecipar a doença. Os novos templos Delfos estão a nascer em laboratórios imersivos que desenvolvem ferramentas digitais, combinando realidade aumentada, realidade virtual e inteligência artificial, neurociência e conhecimento celular. Os algoritmos preditivos ajudam os médicos a tomar melhores decisões, tal como os generais, os imperadores e os comerciantes confiavam nos oráculos como a fonte de informação mais verdadeira para guiar a sua ação na guerra, na política e nos negócios. A relação com o divino, ou com as máquinas inteligentes, nunca dispensou a inteligência humana. Nenhum deus, nem mesmo Apolo, é infalível. Quando Sócrates recebeu, através do seu amigo Xenofonte, a mensagem de que a pitonisa o havia declarado o homem mais sábio do mundo, fez da sua filosofia um método de questionamento radical que abalava todas as certezas. Ficou famoso pelo aforismo “só sei que nada sei”, mas sabia que o pior dos males da humanidade é a ignorância. Em 399 a.C, foi acusado de não aceitar os deuses oficiais e corromper a juventude. Numa das interpelações da Apologia de Sócrates, na versão de Platão, defendeu-se sabiamente, mas não evitou a condenação à morte: “E o que é senão ignorância, de todas a mais reprovável, acreditar saber aquilo que não se sabe?”