Pedro Letria — Sobre “Estrada e Fantasmas”, de Humberto Brito

Falar sobre Estrada e Fantasmas deveria ser fácil pois não é todos os dias que somos confrontados com um livro de fotografias em que a visão do autor se encontra tão claramente definida quanto as imagens são precisas, quer no seu ponto de vista, quer na sua organização em objecto impresso. Nem é frequente sermos mimados com uma revisitação pelo autor do livro e recebermos em mãos a sua reincarnação. Sem dúvida que maior prova da virtude do Humberto não haverá do que este livro ter voltado melhor do que foi.

Não são vistas comuns as fotografias nele apresentadas, pois para as ver há que andar a pé por estradas e ruas em que raramente paramos o carro. O tempo que este conjunto de imagens representa é tremendo: tempo de observação, tempo de convocação e tempo de fotografar. Estas fotografias são a evidência de um palimpsesto: da relação de uma vida, e os últimos 20 anos não residentes do autor, com este território, em que o seu percurso pessoal cerziu esta trama de imagens feitas de passagens múltiplas, que se impuseram e que o arrastaram sem piedade para que este as fotografasse até à saciedade.

Ao abrir o livro, deparamo-nos logo de chofre com uma página dupla com nomes de sítios centrados em cada folha. Onde há um nome na página da esquerda, não encontramos nenhum na página da direita, somente o seu espaço correspondente. A ela corresponde uma página em branco. É um índice sem números de página pois estas não os têm, e que mais parece uma planta, uma vista aérea de um loteamento. Também podemos ler os lugares como se de um poema se tratasse, ou podemos olhar as páginas abertas e impressas como uma imagem remissiva ao próprio livro.

Ou seja, tudo o que vemos está ao alcance de todos, mas para isso precisaríamos de ter a visão tão profunda quanto atenta à superfície das coisas como a do Humberto.

Parece-me que as suas fotografias contêm um paradoxo: a enorme qualidade da atenção do seu olhar, a sua arguta intencionalidade, transporta-nos para uma dimensão que é proporcional a um sentido de familiaridade com os assuntos, mas em que nunca somos convidados a entrar nos espaços visitados. Nem a conhecer quem ali mora ou trabalha. Ficamos sempre na rua. E, no entanto, não nos sentimos marginalizados ou excluídos daqueles lugares. A chave para este estado das coisas é de nunca nos serem dadas a ver imagens feitas de fria ironia, e que por muito que achemos pirosas ou incompreensíveis algumas das opções urbanísticas, nunca o Humberto as ridiculariza, pois as perspectivas escolhidas nunca ofuscam o seu contexto, estabelecendo a relação entre os seus elementos e as escolhas de enquadramento sem os apregoar ou parodiar. Não interessa ao autor fazer propaganda ou papaguear ideias feitas e cansadas sobre a suburbanidade ou amplificar os abusos que a ideia dos não lugares tem sofrido. Cada lugar é significante para o autor, cada fotografia importante pois ressoa a memória de um reencontro e mostra-o com toda a franqueza.

No entanto, e talvez por causa do seu desempenho absoluto, da mestria do autor no manejo do aparato e no entendimento do que a representação fotográfica pode e não pode — assim como de uma dimensão pessoal que informou cada passo dado vagamente ao longo da Nacional 10, vejo-me chamado a convocar exemplos que me ajudem a situar o que o Humberto produziu. Um pouco como ser curador de uma exposição colectiva em que incluísse este trabalho e tivesse de escolher quais os outros autores que convidaria para nela participar. Sou forçosamente obrigado a lembrar-me da exposição The New Topographics de 1975, ou mais precisamente Robert Adams e Frank Gohlke e a sua reinvenção do que entendemos por paisagem, quer na dimensão pictórica, quer na dimensão política enquanto evidência das alterações humanas a ela impostas. Curiosamente, tal como o Humberto, estes americanos foram igualmente formados em Literatura e dela docentes, e acredito que a coincidência não se fica por aí. O retorno contínuo pelos três a locais antes fotografados pressagia um entendimento da necessidade da revisão e afinação literária, o que poderia ser visto como uma contradição da singularidade de todos as fotografias e da impossibilidade ontológica da sua melhoria. Claro que o que está em causa é a dimensão discursiva das imagens e a potenciação da sua articulação sequencial, e acredito que melhor exemplo disto que falo não encontraremos do que em Estrada e Fantasmas.

Mais perto de nós, poderíamos incluir autores como Paulo Catrica que tão bem explora as relações dialéticas que a máquina fotográfica estabelece entre os diferentes objectos e planos espaciais de uma vista, ou António Júlio Duarte quando este se acerca de uma contradição ou de um pormenor e os autonomiza na sua significação.

Mas deixem-me partir de uma imagem do Humberto para ver para onde sou levado, descobrir até aonde estou disposto a ir. São meras hipóteses, meras especulações criadas pelo prazer de alinhar pistas e imaginar conclusões, ou, se quiser ser franco com o meu cinismo, de aceitar expectativas e gerir desenlaces.

Gostava de me perder numa fotografia tirada face a Tróia, provavelmente feita a caminho da cidade de Setúbal, ou do Outão, em que o alinhamento das esferas de cimento para impedir que os automóveis galguem o passeio se perde numa progressão logarítmica infinita, ao mesmo tempo que a sinalética rodoviária reduz autocarros e peões a ideogramas de idêntica escala, e em que até o grafitti se reproduz na perfeição e em espelho dos dois lados do abrigo da paragem de autocarros. O traço contínuo no alcatrão coincide de forma dramática, perfeita, com o canto inferior direito da imagem, como se não pudesse haver outra perspectiva que esta. Para tudo isto olhamos a partir do outro lado da estrada, somente separados por uma sombra em bico projectada com uma nitidez de suster a respiração a partir do que está atrás de nós, à direita. Lembro-me de De Chirico e da metafísica que tanto o ocupou. Sinto-me a habitar uma tela sua e procuro uma sombra fugidia, mas sem sucesso. Sou recordado de outro heterónimo, o Caeiro, parente do autor do único texto incluído no livro, e divirto-me a pensar que talvez se o italiano fosse lá, àquele lugar, concordaria que “Há metafísica bastante em não pensar em nada”.

No horizonte, por entre a malha em arame da vedação rectilínea, a visão da outra margem apresenta-se com timidez: uma fina língua de areia branca reprimida pelo peso de três torres de cimento. Tróia. Se aquilo é Tróia, então aqui, onde me encontro, é Ítaca. Imagino o Humberto a voltar, passados os mesmos vinte anos que Ulisses, e divirto-me com a visão dele vestido de pedinte a passar despercebido pelos seus. Tornado irreconhecível pela máquina e tripé, merecedor da mesma atenção que um agrimensor doutras paragens. Revejo os troncos marcados com golpes na fotografia da capa do livro, e que mais parecem saídos de uma cela prisional onde lhes confiaram o tempo passado. Contei-os: são vinte. Comovo-me com a pressa do autor em querer concluir o levantamento e reclamar o que é seu.

Viro a página. A mesma sombra. É lógico estar ali, mas não é natural. Sinto que o autor brinca comigo. Divirto-me.

*

Fazer um livro — face a todos os obstáculos que imediatamente se levantam, é sempre uma obra nascida de um sonho; de dedicação, de obstinação, de dúvida, de desejo. É uma obra de amor. E este livro, não contente com esse estado natural das coisas, é uma obra de amor dupla, vindo de um lugar onde a sua materialização trouxe a quem o fez, e agora o refez, a intensidade da partilha de uma vontade privada. É como a repetição de votos ditos, ou uma resposta a votos antes professados, mas agora as mesmas palavras soam com outro timbre, com sílabas mais reluzentes e outras mais negras, mais caladas, e assim, desta feita, é-nos apresentada a prova de uma vontade redobrada.

Porque fica um livro na memória? pergunto-me. Como consegue um livro transcender a sua leitura e perdurar na nossa consciência? Todos os livros que tenho de fotografias são histórias já cansadas de serem contadas; ou então eu, insatisfeito com o pouco que sobrou para lá do que consigo lembrar, quedei-me surdo aos seus murmúrios. Por isso é tão especial estar a participar no lançamento de um livro renovado. É uma oportunidade de viver algo feito novo.

Grandes obras só acontecem quando aquilo que é pessoal não se diminui perante a razão e esta é uma obra profundamente pessoal. Este é um grande livro. Muito obrigado Humberto.

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