Sofia Sequeira — Assinaturas cruzadas: instâncias de contaminação e transporte — uma montagem

Se nos aparta o espaço, o tempo – esse nos liga.
A lembrança é no amor a cadeia mais pura.

Manuel Bandeira, “Ao crepúsculo”

O que começara com Michel termina com Patricia, mas se Patricia estava já com-em Michel no trajecto inaugural de Marselha a Paris e na projectada viagem para Itália – não canta ele o nome dela ao atravessar França, antecipando em voz alta o périplo italiano? -, Michel, morto, segue com-em Patricia quando, ao fechar da obra, ela vira costas à câmara, preparando-se para (re)começar a caminhar, lá para onde o filme já não a acompanha. Talvez, então, convenha rectificar: A Bout de Souffle (Jean-Luc Godard, 1959) começa e termina com Michel e Patricia, presente o ausente, em cada caso, na pessoa do outro. Classicamente, o motivo da viagem aí está para sugerir a transformação das personagens, mudadas pelo convívio mútuo.

Com efeito, a simetria do filme e a recorrência gestual que o atravessa atestam a ocorrência de tal mutação. O passar de dedos pelos lábios e a espécie de pantomima sob forma de representação de três expressões faciais, ambos lavra de Michel, ressurgem ao longo da obra, migrando para Patricia, até ao derradeiro momento em que o moribundo protagonista reproduz a esforço as três caretas, antes de fechar, com a própria mão, as pálpebras morrentes, após o que o sinal do dedo recorre, não já pela sua mão, tornada inerte, mas pela de Patricia, que a prolonga, isto num grande plano com quebra da quarta parede, e antes de se insinuar o supracitado voltar de cara, anúncio da caminhada para a vida fora do filme, se por ele condicionada.

Neste ponto, Patricia já não é Patricia. A transmissão do gesto, que a repetição convertera em senha, enunciado mudo de uma relação amorosa privada, corresponde à inoculação de Michel nela, inoculação de permanência selada pela morte. O gesto de Michel é herdado por Patricia, em quem encarna, de tal modo que ele, morto, se continua nela, altera-a. O gesto transmitido é a sua assinatura, o seu traço em Patricia. Michel cumpriu, afinal, em Patricia, o desígnio enunciado pelo escritor entrevistado no filme: “Devenir immortel et, puis, mourir” [“Tornar-se imortal e, depois, morrer”]. Ela o suporte encarnado do prolongamento post-mortem de Michel, cuja vontade se desprendeu, mas não subiu para as estrelas, se à terra pertencia e a Patricia.

Ora, a impregnação deste traço afigura-se especialmente interessante – e irónica – por ter sido por amor da independência, ou de certo entendimento dela, que Patricia denunciara Michel à polícia, mor de o forçar a fugir e a deixá-la, coisa que ele recusa, por exausto e apaixonado. Assim, consciente da situação, reflectira o protagonista: “Moi, je ne crois pas à l’indépendance, mais je suis indépendant. Toi, tu y crois et tu l’es pas.” [“Eu não acredito na independência, mas sou independente. Tu acreditas nela, e não o és.”] De facto, Patricia, que se queria tão intransigentemente desprendida, vê-se para sempre contagiada, assinada, qual túmulo andante da presença-ausência de Michel, inscrito na diferença sensível nela produzida.

Por outro lado, a sugestão de que, como muito neste filme, também os maneirismos de Michel são herdados do cinema, ubíquo em A Bout de Souffle e espécie de biografia espectral do protagonista, a sua vida que podia ter sido e que não foi (note-se que as pantomimas faciais são primeiro desenhadas ao espelho de uma velha amante, conversando as personagens sobre as respectivas incursões no mundo do cinema, surgindo o gesto dos dedos numa sequência de campo-contra campo com o retrato de Humphrey Bogart), tal circunstância, dizia, não deixa de implicar a ideia de uma perda de origem. Eis, com efeito, a caução ambígua da sobrevivência por transmissão e circulação: a salvaguarda do que se prolonga implica a perda da marca de procedência, do valor referencial. Como já acontecera relativamente à matriz cinematográfica, a gestualidade “de” Michel, reencarnando no corpo de Patricia, deixará de lhe ser associada, salvo, claro está, na consciência da personagem feminina e do espectador.

De qualquer maneira, a estrutura que procurei descrever a partir de A Bout de Souffle – o transporte, em nós, de quem nos (trans)forma, e isto mesmo em situação de ausência ou, ausência máxima, morte -,  tal estrutura, dizia, encontra uma actualização mais radical num outro filme, todo ele enquadrado como objecto fantasmático-espectral, ou não consistisse na evocação, por vozes acusmáticas, da existência de uma mulher entretanto morta, nunca havendo, além disso, sincronismo entre os corpos em cena e o respectivo discurso, reproduzido em off. Refiro-me a India Song (Marguerite Duras, 1975) e, mais especificamente, à magnífica sequência de dança entre Anne-Marie Stretter e o vice-cônsul de Lahore.

Este último, compulsivamente afastado daquela cidade, afirma a permanência nela – fruto da sua permanência nele – e mesmo a inseparabilidade, por coincidência, de ambos: “Les autres me séparent de Lahore, je ne m’ en sépare pas. Lahore c’est moi.” [“Os outros separam-me de Lahore, mas eu não me separo. Lahore sou eu.”] A mesma lógica, estende-a, depois, a Anne-Marie, transportada independentemente ou mesmo contra a sua vontade, por integrada no vice-cônsul: “Vous êtes avec moi devant Lahore, je le sais, vous êtes en moi. Je vous emmènerai en moi et vous tirerez avec moi sur les lépreaux de Shalimar. Que pouvez vous?” [ “A Anne-Marie está comigo diante de Lahore, eu sei-o, está em mim. Eu levá-la-ei em mim, e disparará comigo sobre os leprosos de Shalimar. Que pode você fazer?”] Mais: entre ambos haveria uma identificação tão completa que os mesmos convívio e diálogo se tornariam supérfluos, prescindíveis: “Je n’avais pas besoin de vous inviter à danser pour vous connaître et vous le savez. […] Il est tout a fait inutille qu’ on aille plus loin, vous et moi. Nous n’avons rien a nous dire, nous sommes le même. […] Les histoires d’amour, vous les vivez avec d’autres. Nous n’avons pas besoin de ça.“ [“Eu não precisava de a convidar para dançar para a conhecer, e a Anne-Marie sabe-o. […] É inútil irmos mais longe, você e eu. Não temos nada a dizer-nos, nós somos um mesmo. […] As histórias de amor, vive-as com outros. Nós não precisamos disso.”] Good night, Benjamin; Good night, Daisy.

Entretanto, a discussão em curso tornar-se-á, creio, mais interessante se, à esfera da identidade e da relação, se somar a da criação artística e da assinatura. Ajuntemos, pois, dois casos à colação. O primeiro concerne a uma das amizades mais profícuas do modernismo brasileiro, a de Manuel Bandeira e Mário de Andrade. Bandeira reconhece em Mário a sua última grande influência, chegando, em 1925, a escrever-lhe: “Passei uma semana trabalhando num longo poema que abandonei porque era mais seu do que meu. Escangalhei-o e conservei pedaços. Assim em pedaços é mais meu. Mandarei na carta seguinte. Diga-me com franqueza se podem passar por meus.”(Moraes, 2001: 195)

Todos os passos deste breve parágrafo merecem atenção. Note-se que Bandeira começa por afirmar a rejeição de um poema, por pressuposta contaminação e consequente falta de autenticidade, aqui tida como valor imprescindível na criação artística e concebida em termos de propriedade autoral e assinatura; em seguida, refere a desconstrução, por fragmentação e selecção, da composição produzida, uma operação cujos resíduos seriam, supõe, “mais [seus]”; por fim, Bandeira convoca Mário, a alteridade influenciadora, para julgar sobre a identidade dos “pedaços”, aferindo da autonomia (mínima) dos fragmentos relativamente à sua própria dicção e sugestão.

Mais de vinte anos volvidos, o episódio seria recuperado em Itinerário de Pasárgada, conjunto das memórias poéticas de Bandeira:

Grande influência, repito, e de que eu tinha então clara consciência, tanto que depois de escrever certos poemas […] estive quase a inutilizá-los porque me pareciam verdadeiros «à la manière de». Se não o fiz, foi porque o mesmo Mário me convenceu de minha ilusão, provando-me, com bons argumentos, que eles eram tudo o que poderia haver de mais «Manuel». (Bandeira,1958: 57-58)

 Reencontramos aqui o percurso anterior: putativa “inutilização” dos poemas por consciência de contaminação autoral; alienação, na alteridade, do juízo sobre a identidade dos textos e, enfim, recondução à autenticidade através da persuasão de Mário, tornado alfa e ómega deste circuito: de Mário influência forte e paralisante a Mário garante da originalidade poética de Bandeira.

Parece, porém, interessante notar que, poucos anos depois do envio daquela primeira carta, no importante ensaio “A poesia em 1930”, Mário de Andrade estabelece uma inesperada disjunção entre o mais autêntico e o melhor Bandeira, chegando mesmo a concluir que “Será, talvez, a ironia da sorte contra esse grande lírico intratavelmente individualista, isso dele ser tanto maior poeta quanto menos Manuel Bandeira…” (Andrade, 2002:42). O mesmo argumento impenderia na organização da primeira antologia de Poesias Escolhidas de Bandeira, como o próprio relata em Itinerário de Pasárgada:  

A seleção foi minha, com o conselho de dois ou três amigos. A maior ajuda me veio de Mário de Andrade. Minha idéia primeira era escolher o que me parecesse mais meu. Ponderou Mário no entanto que, procedendo eu assim, ficariam excluídas da coletânea muitas das minhas melhores coisas. (Bandeira, 1958: 86)

O poeta anteriormente angustiado com a influência e cioso da autenticidade está agora disposto a prescindir da pessoalidade em prol do valor artístico – ainda, repare-se, por adesão ao argumento de autoridade de quem antes o apaziguara autenticando-o.

Por fim, e para também este texto terminar como começou, refira-se Le Gai Savoir, outro filme de Jean-Luc Godard, desta feita de 1969. Dessarte, os protagonistas, Émile e (fantasmática coincidência!) Patricia, encontram-se todas as noites num estúdio de televisão, espécie de vazio negro, para discutir a natureza de sons e imagens, e a sua relação. No final da experiência, Patricia lamenta a perda acidental de metade das filmagens efectuadas, elencando exemplos a que Émile invariavelmente riposta com uma certeza reconfortante, a de que o sumiço das filmagens seria colmatado pela promessa de obras vindouras, de algum modo capazes de as substituir, ou repor. Assim, a sequência na qual se provara que ”tudo pode ser abordado por uma análise marxista ou freudiana”, essa, assegura Émile, “Bertolluci filmá-la-á em Roma”; aquela em que se concluíra ser “honrada” a “família em que tudo é tabu”, “essa, Straub filmá-la-á na Alemanha”, enquanto a sequência em que se ilustrava “o saque do terceiro mundo”, “essa, Glauber Rocha vai filmá-la no Brasil.” E como Patricia se preparasse para ajuntar outro item ao catálogo de perdas, Émile atalha, estendendo ao infinito a gradação crescente: “Oui, mais puisque je te dis qu’ il y a d’autres cineastes qui le feront!” [“ Sim, mas pois se te digo que há outros cineastas que o farão!”]

Ora, o que aqui se projecta é a possibilidade de encontrar expressão (de si) em obra alheia – possibilidade ou esperança, afinal, de toda a arte, permitindo, aliás, repensar um certo entendimento político-cultural de representação hoje em voga: trata-se não da pretensão (necessariamente autoritária) de representar ou ser representante de alguém, grupo que seja, mas da possibilidade de se reconhecer e encontrar, de se considerar representado ou dito em obra alheia, dela se apropriando no melhor sentido da palavra, de tal modo que a dita obra, mesmo se contra a vontade do seu autor, para recuperar o cenário de India Song, passa a habitar em nós e a constituir-nos. Daqui resulta, para Patricia e Émile pelo menos, o apaziguamento resultante da convicção de que não é preciso dizer-se pessoalmente tudo, pois outros poderão dizer por nós, dizer-nos, com equivalente grau de identificação e pertença.

Se a discussão de Bandeira e Mário se centrava nas categorias de assinatura e originalidade, o final de Le Gai Savoir sugere um horizonte em que a demarcação autoral perde relevância – recorde-se que, aquando da estreia do filme, já Godard co-fundara o grupo Dziga Vertov, que, animado pela irrupção do Maio de 68, advogava a abolição da autoria individual. A mudez da origem, a abolição da autoria e do nome próprio, segundo Tomás Maia resíduo icónico da arte, possibilitariam talvez a completa abertura à fantasmagoria e à apropriação fantasmática, um estado de coisas em que não chega a haver roubo, porque não há propriedade, apenas fluxo. Assinaturas cruzadas, assinaturas diluídas.          

 

Referências

Andrade, Mário de. 2002. “A poesia em 1930”. In Aspectos da Literatura Brasileira. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 37-57.

Bandeira, Manuel. 1958. Itinerário de Pasárgada. In Manuel Bandeira – Poesia e Prosa em dois volumes. Volume II – Prosa. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1-112.

Moraes, Marcos Antônio (ed.). 2001. Correspondência Mário de Andrade e Manuel Bandeira. São Paulo: Edusp/ IEB.

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