Ricardo Braun — Um Problema de Gramática: L’avventura

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Vários fantasmas (uma hipótese).

Primeiro: o fantasma de Anna. Aos vinte e poucos minutos do filme L’avventura (1960), de Michelangelo Antonioni (faltam duas horas para o fim), Anna (a primeira mulher) desaparece. Ou melhor, dissolve-se: como um cubo de açúcar num copo de água. Mas este não é um filme sobre um desaparecimento, como é o The Vanishing (Spoorloos) (1988), de George Sluizer. Aí, o fio é sabermos exatamente o que aconteceu: quem, como e porquê. (O fim do filme é a resposta terrível a essas perguntas.) Aqui, Anna desaparece e o mundo rapidamente preenche esse vazio: rapidamente volta ao normal. Inventa-se uma explicação para o seu desaparecimento (ter-se-á matado, ou fugido dali num barco), deduz-se daí um motivo (seja qual for a razão, ela assim quis), e o resto do filme corre como se Anna fosse (e tivesse sido sempre) só uma ideia, uma culpa (ou uma falta de pudor). Sandro e Claudia (o namorado e a melhor amiga de Anna) procuram-na, peneiram a ilha, vão à polícia e aos jornais, mas essas sequências dizem mais sobre a forma como funcionam esses poderes (uma performance da verdade, ou da busca da verdade) do que sobre o verdadeiro desejo de saber. (Para Sandro, sobretudo, também é uma performance do luto.) O filme parece ser sobre as histórias que preenchem os vazios, como quando Anna inventa um tubarão que nunca existiu naquela água: um risco qualquer que fure o tédio. E parece ser, também, sobre a impaciência dos vivos com todos esses vazios, os do nada e os da morte. Disse que o filme rapidamente volta ao normal, rapidamente preenche o vazio que tem a forma de Anna. E é verdade: Sandro e Claudia, unidos por este vazio, começam (apressadamente) uma relação que vai ocupar o resto do filme. Ainda assim, Sandro não entende as razões da reticência de Claudia (“Se a Anna estivesse aqui, eu entenderia”). Claudia (que é Monica Vitti, a mulher mais bonita do mundo) responde: “É possível que demore tão pouco tempo a mudar, a esquecer?” São esses os temas do filme: o amor, o tempo, a memória. E é essa a principal diferença entre um filme que quer saber e um que não quer (a preocupação e o interesse são outros). Em The Vanishing, a mulher (Saskia) está viva até que se prova a sua morte (porque o namorado, Rex, quis que ela vivesse, quis saber tudo) (como o outro Rex, Édipo): em L’avventura, Anna está morta e viva, ao mesmo tempo (o gato na caixa). Anna é um fantasma: uma sombra na parede, um eco que voa sobre o vale. Proposta: que um fantasma é um problema de gramática, um era e um é, ao mesmo tempo. Os tempos todos do verbo. O que nos leva ao fantasma

segundo: o fantasma do filme (para quem o viu). Quando o tinha visto pela última vez, há pouco mais de quatro meses (e já sabia que ia escrever este texto), guardei nos olhos o momento preciso em que Anna desaparece. Antonioni liga as duas partes do filme, o antes e o depois do desaparecimento de Anna, através de um dissolve, aquilo a que o livro Gramática do cinema, traduzindo do francês, chama um esbatido encadeado: um tipo de transição entre dois planos (e entre duas sequências) em que a primeira imagem desaparece à medida que a segunda aparece, e que normalmente (na linguagem clássica do cinema) serve para sinalizar, 1) a passagem de tempo, 2) a mudança de lugar, ou 3) ambas as coisas. (É este terceiro o caso mais comum. É o mesmo que uma mudança de capítulo faz num livro: é esse tipo de salto.) Duas imagens, então, encadeadas: na primeira, Anna está lá (Sandro também, acabaram de discutir); na segunda, está o chão escarpado da ilha e o mesmo mar: e ninguém. Mas entre as duas, há uma terceira imagem: a de Anna em marca de água, meia cortada pelo mar, a dar-nos as costas. Nessa mesma imagem, Sandro torna-se o corpo da ilha. Assim, os dois: a terra e o mar.

Convenci-me de que esta (a do desaparecimento) era a única vez em que Antonioni usava um dissolve para passar de uma sequência a outra: e que todo o resto do filme usava cortes limpos entre os planos e entre as cenas. Revi há poucos dias o filme (para começar a escrever): e não é verdade, claro, há muitos outros dissolves. (Fiz outro filme na minha cabeça: um filme-fantasma.) Mas o essencial da hipótese mantém-se: a ideia de que um problema de gramática só se resolve com uma solução de gramática. Isto é, que Antonioni ressignifica o dissolve para conseguir o fantasma: porque 1) o tempo não passa, é o mesmo dia, a mesma tarde, 2) o espaço não muda, é a mesma ilha, e 3) Anna desfaz-se contra a imagem do mar. Desaparece nesse vale das imagens: e o intervalo diz-nos que o desaparecimento de Anna (que, num outro filme, seria o gatilho da narrativa) importa aqui muito pouco. É curioso que, no mesmo ano, outro filme tira-nos aquela que até aí achávamos ser a protagonista (hoje, neste filme, sabemos que a protagonista é a mulher mais bonita do mundo): mas enquanto Hitchcock mata a sua primeira mulher, Antonioni deixa-a morrer. O seu olhar é outro: vira-se para outras coisas. O que nos leva ao fantasma

terceiro: o fantasma deste tipo de cinema. Digamos, (mais ou menos) como disse Schrader e Deleuze, que este é um cinema do tempo: isto é, um cinema que usa o tempo para mostrar o tempo, para pensar sobre o tempo. Claudia disse em voz alta a tese do filme: “É possível que demore tão pouco tempo a mudar, a esquecer?”. Sandro responde-lhe: “Demora menos ainda”. Ao fim de quatro dias, Sandro vai esquecer-se de Claudia no sofá de um hotel. Quando escrevi acima que o amor dos dois era apressado, que tudo parece acontecer depressa demais, não estava a fazer um juízo de valor: porque o filme não nos dá esse tempo. Aqui, o tempo do drama é comprimido: vê-se a barriga da máquina por dentro. Antonioni troca o tempo da narração (e da verosimilhança) pelo tempo da observação: comprime para poder dilatar. Alguém dizia da música dos minimalistas americanos (Philip Glass, Steve Reich, John Adams) que ela era lenta e rápida ao mesmo tempo, que havia nela uma pulsação estreita (a da repetição) e outra mais larga (a da variação): a nota e o compasso, o tempo pequeno e o grande. L’avventura, como outros filmes de Antonioni da mesma fase, é sobre os espaços entre as coisas: os gritos, as noites, os eclipses. (É a essa hora que saem os fantasmas.) Precisamente quando o filme muda, no momento em que Anna acabou de desaparecer (não o sabemos ainda), Giulia, uma das mulheres do grupo (uma dessas burguesas que é um passeio de iate), diz (para encher outro vazio): “Está a mudar o tempo”. (Porque o céu começa a carregar-se.) O marido, Corrado, responde-lhe: “Por favor, Giulia, não sejas sempre tão didascálica. Eu também consigo ver que está a mudar”. É um jogo de facas entre casais (que é outro tema de Antonioni), mas também é uma espécie de programa para este tipo de cinema (que não é teatro): a ideia da primazia do olho sobre a voz, do tempo entre as coisas, do rápido e do lento. Demora tanto a levantar uma parede nua como a fazer-se uma montanha: e a passar a mão pelo cabelo do homem que amamos.

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