Abel Barros Baptista — Ghosts can be trusted!

O meu primeiro fantasma avisou-me que apenas diria ao que vinha na condição de permanecer anónimo. Nem se deu o caso  — não sendo visão nada familiar — de lhe perguntar quem era. A advertência saiu-lhe pronta, até ríspida. Creio que assim se explica o atraso com que percebi tratar-se de assombração que me era estritamente destinada — fantasma particular. Pode também ser que me tenha embaraçado na insólita cena do anonimato. Desde quando os fantasmas se preocupam com a confidencialidade? ou se desencarregam de missões em que o nome não tem importância? ou tem tal ou tanta que exige encobrimento? Mas insólito, deveras insólito, foi reconhecer o fantasma en tant que tel e contudo esbarrar no requisito de anonimato. No exacto ponto desta última observação é que enfim percebi que aquele fantasma vinha para mim — fantasma particular. 

O aviso era tudo, afinal — seria? Boa assombração, imperiosa; duas possibilidades actuais e actuantes, como se a dizer:

— Eis-me! ou porque o nome não releva para o que venho fazer ou porque o nome descoberto seria impedimento para o que venho fazer, sou e permanecerei espectro anónimo — aceita ou dissolvo-me sem mais!

Desconfortável alternativa… decerto nem eu nem o avantesma a chegámos a formular; não obstante, pedia atitude sensata: por exemplo, esperar que o desempenho espectral a removesse, por elucidação ou obnubilação. O que deveria acontecer: fosse porque fosse, se a missão pedia anonimato, no cumprimento dela é que eu me devia concentrar. E aguardar sereno. Mas não se pode pedir serenidade a quem defronta o seu fantasma particular pela primeira vez. Quando dei por mim, vi-me impertinente, e desabrido interpelava-o assim:

— Não passas dum impostor. Como podes recusar-me o teu nome, se o nome é que é o espectro que há em ti?

Não se consegue descrever o resto. O fantasma não parecia reflectir, estava assarapantado; atónito ou… indiferente. Talvez a melhor palavra seja impassível, porque apenas disse:

— Chama-me Firmino.

Mesmo tom; ríspido, imperioso. Afinal ridículo. Como se alguém se fosse submeter de pronto a  algum Firmino. Vicente, Martim, Lourenço… até podia ser… Firmino?! Nome tosco, diminutivo; mas já se viu pior. Até calha etimologicamente ao espectro — firme, constante… Podia ser pseudónimo de fantasma imaginativo e trocista. Fingidor. Os fantasmas ironizam? Usam pseudónimos? …mentem…?

— Chama-me Firmino.

Não era ele a repetir. Era outra voz — eu, a minha? Confesso que não atinei. Se já lhe dissera que o nome é o espectro que há nele, que podia esperar dum fantasma chamado Firmino?

Era a minha vez de ficar assarapantado; acho que estúpido seria a palavra adequada. Mas há palavra adequada diante de um fantasma? e fantasma a mim estritamente dirigido —  fantasma particular?

Já são muitas perguntas. Na altura, não fiz nenhuma. Na altura, aliás, não fazia perguntas a ninguém. Hoje acredito que isso mesmo me salvou. Havia demasiada gente opaca a questionar — e a questionar-me. Adoptei durante anos esta sentença catita: «Se não queres que o teu vizinho te minta, não lhe perguntes nada». Seria válida para fantasmas?

— Chama-me Firmino!

Agora, sim, era ele a insistir. E parecia impaciente, o meu fantasma particular. Virei-lhe as costas lentamente, para não o espantar, pesquei o iphone do bolso e escrevi a pergunta. Não esperava resposta tão pronta, tão concisa. Peremptória é a palavra adequada:

— Yes, ghosts can lie, but they can also be trusted.

Grande espanto o meu! O tema já tinha sido abordado por milhares de assombrados. Nada além disso podia explicar esta resposta e a rapidez com que chegou. Decidi-me a confiar no exacto segundo em que lhe ouvi de novo:

— Chama-me Firmino!

Virei-me para ele, confiante, e até sorrindo. Mas já só lá estava a voz, o nome ou o que fosse nas sombras da noite, aliás deliciosamente bela.

Previous
Previous

José Bértolo — White Noise, de António Júlio Duarte (ou O pesadelo de Platão)

Next
Next

Amândio Reis — O Poema do Papagaio (António Franco Alexandre)