José Bértolo — White Noise, de António Júlio Duarte (ou O pesadelo de Platão)

António Júlio Duarte (AJD) define-se como, à falta de terminologia mais precisa, um fotógrafo documental. Paralelamente, numa entrevista de 2011, o fotógrafo afirma o seguinte: “A fotografia é na sua essência fantasmagórica, registo do que já não é. Uma ruptura no fluir do espaço-tempo”. E acrescenta, ainda: “Mas o que é realmente fantasmagórico é o real.” A junção destas duas ideias permite-me ensaiar aqui uma porta de acesso à obra de António Júlio Duarte, ajudando a fazer sentido de uma fotografia profundamente singular e, diga-se desde já — e o adjectivo não surge aqui por acaso —, profundamente estranha.

Estamos, portanto, perante um “fotógrafo documental” que concebe a fotografia como um meio como uma essência fantasmagórica. Fantasmagórica porque, segundo o artista, ela cria uma perturbação no fluxo espácio-temporal, neste introduzindo uma “ruptura” (é esta a palavra de AJD), mas também, noutros termos, um furto. Com efeito, dir-se-ia que a fotografia rouba ao real um momento no tempo que, na ordem natural das coisas, permaneceria intocado e seria irremediavelmente perdido.

Partimos, portanto, de um paradoxo no centro da prática de António Júlio Duarte: esta é uma prática documental que não almeja à documentação positiva (digamos assim) do real, porque talvez essa abordagem não fosse sequer a mais consequente, dado que o artista concebe o real como, na verdade, algo negativo. Positivo/negativo e realista/fantasmagórico reúnem-se, assim, numa terceira coisa. E, deste ponto de vista, o paradoxo faz pleno sentido: seguindo os raciocínios de AJD, dir-se-ia que o verdadeiro estilo documental é aquele que olha o real como a fantasmagoria que ele, na verdade, é.

Mas esta fantasmagoria que o real é é positiva. Na segunda entrevista que referi, o entrevistador pergunta:

Em que medida entende a fotografia como dispositivo de mediação/representação do mundo? Ou, serão antes as fotos dispositivos de inscrição no mundo contrariando a ideia da fotografia documental, a foto como revelação de algo que está ali mas não se vê, que é preciso revelar?

E AJD responde, simplesmente: “Não gosto de pensar nas imagens fotográficas como reveladoras, mas como algo que se vê e faz ver.”

Como se dissesse que a espectralidade do visível já está na sua epiderme, e que a fotografia não faz senão preservar essa superfície epidérmica na forma de imagem. A imagem não teria, assim, que ver com o que está para além do visível, ao contrário do que sucede na tradição revelacionista da imagem fotográfica, com expressão particular no cinema das vanguardas europeias do início do séc. XX. O fantasma está, então, à flor da pele do mundo.

Tudo isto parece simples, mas, na verdade, estamos a operar no domínio da elusividade dos próprios conceitos. Esse é o território no qual a fotografia de António Júlio Duarte acontece: é simples, mas complexa; lida com a superfície, mas está longe de um paradigma da clareza ou da transparência; é “realista”, mas furta-se à leitura. Um conceito que concretiza esta qualidade específica da fotografia de Duarte é o Unheimlich de Freud. Ou Uncanny em inglês. Ou, em português, e sendo perifrástico, o intervalo indecifrável entre o familiar e o estranho.

Muito do trabalho de Duarte pode ser descrito através desta ideia de Unheimlich, justamente devido ao seu carácter problematicamente documental que comecei por referir. É que, olhando as suas imagens, elas aparecem-nos como simultaneamente familiares e insólitas, daí resultando a sua estranheza e a sua singularidade.

Desta característica talvez não haja exemplo mais paradigmático do que a série, e o livro, White Noise.

Em 2009, António Júlio Duarte deslocou-se para Macau para acompanhar as duas últimas semanas da campanha eleitoral de Fernando Chui Sai On, que era, à época, o único candidato às eleições de chefe executivo de Macau. Dessa reportagem inusitada — dado seguir uma campanha eleitoral em que existe um único candidato —, resultaria o volume The Candidate, publicado pela GHOST em 2012.

The Candidate foi fotografado durante o dia, ou, por outras palavras, durante o horário de expediente da equipa do candidato Chui Sai On, que coincidia, assim, com o horário de trabalho de AJD — aqui tornado uma espécie de foto-jornalista. À noite, porém, regressado ao hotel, Duarte tinha dificuldade em adormecer. Dirigia-se então para os casinos de Macau, não para jogar, mas para fotografar nos lobbies.

As imagens produzidas nestas visitas resultam da combinação de duas coisas: 1) a natureza específica dos espaços fotografados (esta é, aliás, uma fatalidade da fotografia), e 2) o estado insone do fotógrafo.

Mais do que da combinação, elas resultam, até, da confluência entre a especificidade desses espaços e a especificidade da insónia: coisas à partida muito distintas, porque pertencentes a categorias muito diferentes, mas cuja reunião parece criar as condições perfeitas para a produção de um determinado tipo de imagem.

Todas estas fotografias foram tiradas em lobbies de casinos ou em áreas que não as de jogo, como, por exemplo, casas de banho. Os espaços são opulentos e marcadamente ostentatórios. Existe uma acentuada variedade de iluminações artificiais (dado que tudo é fotografado em interiores), brilhos, matérias, texturas e cores. Existem muitas figuras que remetem para o mundo natural — tanto para o animal, quanto para o vegetal ou o mineral. Porém, a falsidade ostensiva da decoração dos lugares, ao invés de nos remeter verdadeiramente para esses universos naturais figurativamente representados, remete-nos para o domínio do artifício e do enganoso, do ilusório. A estética do falso que dá carne à arquitectura dos casinos de Macau é transferida para as imagens, que, na sua bidimensionalidade, ao achatarem o real, parecem acabar por sublinhar a artificialidade dos espaços. Como se fossem cópias de cópias — bem afastadas, portanto, do real. O pesadelo de Platão.

António Júlio Duarte é indubitavelmente um fotógrafo associado ao real. Porém, o facto de o real que serve estas imagens carregar uma forte sensação de irrealidade aproxima o trabalho de uma esfera que à partida pareceria estranha a AJD: a do onirismo.

Com efeito, estas fotografias localizam-se entre o sonho e o pesadelo — isto é, entre o sono feliz e o sono perturbado. E se falar na dicotomia sonho/pesadelo, noutro caso, poderia significar incorrer no perigo de flirtar com a banalidade, aqui torna-se curiosamente pertinente e frutífero, tendo em conta o contexto do qual White Noise nasce: um homem, numa cidade estranha, que, provavelmente vítima de um certo jet lag — isto é, um sentimento de estar fora dos eixos de si mesmo —, não consegue dormir à noite, nem pode dormir de dia — portanto, não dorme nunca —, deambula pela cidade que, como ele, também não dorme, num estado de extremo cansaço e de perturbação psíquica. Estas imagens são, portanto, os sonhos de um sonhador acordado, os quais nascem de uma faísca produzida no contacto entre uma realidade física tão sui generis quanto os lobbies dos casinos de Macau e o estado de (in)consciência de um vigilante ensonado.

António Júlio Duarte conta em várias entrevistas que o estado de privação de sono em que se encontrava naquela altura desencadeou uma hipersensibilidade ao som. Estando demasiado sensível ao som, tornou-se uma espécie de analfabeto sonoro, incapaz de distinguir os sons, enquadrá-los numa paisagem sonora. Os sons reuniram-se numa mescla e criaram um ruído branco.

Eis o título do trabalho, então. White Noise. Ruído branco é o som produzido pela combinação de todas as diferentes frequências sonoras, com a mesma intensidade, ao mesmo tempo.

A ideia de som — fatalmente ausente das fotografias, arte associada, mais do que qualquer outra, à visão — acabou por informar este trabalho na passagem ao livro. Na abertura e no fecho do livro, vemos ondas de som que traduzem a frequência do ruído branco do título. Mas, para além disso, elas cumprem esta estranha função de conter as trinta e oito imagens dentro de um código de representação profundamente distinto daquele da fotografia: um código que acaba necessariamente por contaminar as imagens no interior de algo que não só lhes é estranho como é mesmo incompatível com elas: o som. E, especificamente, este som inexpressivo que é o ruído branco.

O próprio formato do livro tem como modelo as capas dos vinis LP de 12 polegadas, consistindo num quadrado de 30x30cm, o que sublinha esta aproximação entre a fotografia e o som — ou, aqui, à música, arte através da qual AJD chegou à fotografia, através das fotografias de Mapplethorpe nas capas dos álbuns de Patti Smith, tal como conta a João Silvério noutra entrevista.

Mas tendo uma componente intrínseca ao livro, a música surge ainda na constelação de White Noise de forma extrínseca. Para o lançamento do livro, António Júlio Duarte pediu a Filipe Felizardo, músico e editor da Antumbra, para compor uma banda sonora inspirada no livro. Essa banda sonora foi depois gravada e disponibilizada online, podendo ser ouvida no site do músico, e colocando questões interessantes, mas que não explorarei aqui, sobre a relação sempre problemática entre fotografia e música.

Não obstante tudo isto, julgo que ainda não é inteiramente claro o modo como Duarte chegou ao conceito de white noise neste trabalho, dado que o ruído branco não é, de facto, o som que o AJD ouvia nas suas noites no casino. O uso da expressão é metafórico. Mas que metáfora é esta? De que forma é que ela pode iluminar verdadeiramente as imagens? Talvez a metáfora cromática com que a expressão é construída ofereça uma pista.

Ao investigar sobre a noção de white noise, rapidamente ficamos a saber que esta designação tem na sua base uma analogia com White light. A junção de todas as cores, no plano luminoso, produz luz branca. Portanto: fomos do ruído à luz, do som à imagem, da música à fotografia.          

Com efeito, White Noise poderia chamar-se White Light. É bem conhecido que uma das características mais definidoras da fotografia de António Júlio Duarte é — para além do formato quadrado — o uso do flash. Em AJD, o flash parece ser usado simultaneamente como necessidade técnica e como marca estilística. Porém, em trabalho algum a presença do flash é tão evidente quanto neste White Noise. E isto acontece porque as superfícies brilhantes e artificiais dos materiais fotografados reflectem amiúde o flash, sem que o fotógrafo pareça esforçar-se para o esconder.

Aqui, o flash é muito mais do que uma necessidade para fotografar (embora também seja, dado que estas são fotografias tiradas provavelmente sem tripé, em filme, e em lugares com uma luminosidade insuficiente). O flash sublinha a dimensão irreal, onírica, destes lugares, que comentei acima, e agudiza o paroxismo das cores, das texturas, dos materiais.

Para além disso, ele assinala, também, a presença da fotografia enquanto gesto, e do fotógrafo enquanto operator, como lhe chamou Barthes. Por outras palavras, o flash na imagem significa tanto o gesto da obturação (o registo do tempo em que a fotografia acontece, portanto), quanto uma figura análoga da câmara, ou do aparato técnico, e, por conseguinte, do fotógrafo.

O flash é, de facto, o fantasma na fotografia. A aparição da própria condição de visibilidade da fotografia. E o fotógrafo é o fantasma fora da fotografia, de que o flash é uma espécie de índice — signo assente numa relação de contiguidade —, numa lógica obtusa de substituição.

As paisagens desumanizadas, e até desvitalizadas, porque desprovidas de seres com vida, que vemos nestas imagens são simultaneamente espaços que assombram a fotografia (e o fotógrafo, que não consegue deixar de para lá se dirigir noite após noite) e espaços que são assombrados pela fotografia e por António Júlio Duarte. Poderíamos dizer que esta relação dupla de assombração — o objecto pelo sujeito, e vice-versa — está presente em toda a fotografia, é certo. Porém, ela sai aqui reforçada, dadas as características que revestem e constituem este trabalho em particular — e que fui aqui comentando —, e nomeadamente na sua forma final de livro: o livro White Noise.

Na verdade, já na capa esta dualidade — White noise, White light — se encontra presente. Numa primeira aproximação, é evidente que o círculo negro parece remeter para a forma do vinil. Mas se tivermos em mente o flash como princípio de todas as fotografias que estão reunidas no livro, podemos ver este círculo como análogo do círculo de luz que o flash lança sobre o espaço quando é accionado. Porém, a negro, ou seja, em negativo. Porque o livro não é luz, mas opacidade — e a reunião das cores, que na luz resulta no branco, no papel produz negro

(esta mesma operação voltaria a aparecer, aí de forma quase didáctica, muito mais tarde, numa fotografia da série Febre [em baixo], exposta em Serralves, em 2023)

E, também — esta é a minha última sugestão —, porque o flash aqui já não existia, desde o início, para permitir ver propriamente o que está lá, mas sim para permitir imaginar no que está lá o que lá não está. Um mundo imaginário, alucinatório, de cores e formas. Ou, por outras palavras, um mundo de sonhos-acordados sonhados e fotografados por um homem insone. Fotografia documental, portanto.

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