Afonso Dias Ramos — Este mundo e o outro
Entre as mãos, o rascunho de um texto sobre violência política e imagens fotográficas selvaticamente gatafunhado, quando, da janela do avião, o vislumbre da silhueta da Cidade do Cabo me paralisou. No caminho do aeroporto, o condutor informou-me de que já não iria falar à Universidade de Western Cape. Durante o voo nocturno, no meio dos tumultos estudantis, deram com cocktails molotov espalhados pelas instalações. A ameaça levou-nos para o coração da cidade, ao Museu do District Six, um memorial ao bairro multirracial do qual a população não-branca foi removida à força pelo apartheid umas décadas antes. A conferência agitada gravitou em torno de espectros, imagens e atrocidades, um pouco por todo o mundo. Alguns dos interlocutores levaram-me a ver a exposição no final, indicando os vestígios dos antigos moradores, com os seus nomes assinados na parede, as caras fotografadas, até me dar conta de que o relato vinha de quem vivera ali mesmo e havia sido expropriado, evocando as marcas de uma ausência tangível, como numa prosopopeia da história contemporânea. Apenas uns dias antes, em Londres, calhou assistir a uma ovação espontânea a Sydney Kentridge, o advogado de figuras lendárias da luta anti-apartheid como Nelson Mandela ou Steve Biko, numa sessão de homenagem ao seu filho, William Kentridge, no Instituto Warburg, levando uma plateia inteira de pé a aplaudir a sua luta legal contra esse processo tirânico, e eis-me subitamente transportado no tempo e no espaço para estas ruas na África do Sul, ao lado de dedos apontados, soletrando na geografia em redor o que deixou de existir e continua vivo, nomeando as ruas desaparecidas e assobiando a vizinhos defuntos, no meio de um interminável litígio em tribunal para reaverem aquilo que lhes é de direito.
Uns meses depois, outra viagem académica, com destino à Cidade Velha, Cabo Verde. Acabadas as sessões, fugi às comemorações oficiais com dois cúmplices, aproveitando a boleia para a ponta oposta da ilha até o campo de concentração do Tarrafal. Visitar o fantasma-mor do imaginário colonial português obrigara a um trabalho de persuasão pela noite da véspera dentro, estendidos no terraço do hotel. A referência não era só internacionalmente obscura, como as pesquisas online devolviam praias turísticas ou passeios de barco. Pela manhã, essa longa estrada rumo ao inferno para onde foram desterrados seiscentos presos políticos nos confins de Santiago. E, de súbito, ali, o Campo da Morte Lenta. O carro estaciona num vilarejo perdido no tempo, sem sinal humano. Acorre, de imediato, na nossa direcção um bando de cinco crianças de mão estendida, transidas de fome. Inspecionámos cada recanto da colónia penal que vai sendo lentamente engolida pelo capim, sem ver mais ninguém, tentando extrair a parca informação de cartazes já completamente desbotados pelo sol. Toda a visita decorreu sob o olhar atento dos miúdos, instalados na torre da entrada, seguindo os nossos movimentos. Quem eram, exactamente, os fantasmas neste cenário? As três sílabas do Tarrafal declinaram ainda mais adiante, sentados numa esplanada com vista para a praia apinhada de turistas, e debruçados sobre peixe escalado e o vinho branco, remoendo, com moralismo retorcido, a lembrança de que em Lisboa nem isso, a sede da PIDE diminuída à mais imperceptível das placas à porta de um condomínio privado.
Meses mais tarde, no Camboja, descemos dos templos a norte ainda encadeados por aquelas formações em pedra que pareciam emergir do fundo dos tempos, precedendo e sobrevindo à natureza, os últimos sinais de uma civilização soterrada. A caminho do sul, fomos dar às margens barrentas do rio Mekong, e todo o seu cortejo diabólico de aberrações arquitectónicas. Era Phnom Penh. Escapulimo-nos já tarde do hotel para nos irmos perder juntos pelas ruas da cidade. Não se via ninguém. Jantámos algures, recordo, depois voltámos a perder-nos, sem mapa, sem telefone, sem controlo, em conversa convulsiva, contra a canícula e pestilência que se colava aos nossos corpos. A deriva levou-nos a um bar no topo do edifício mais alto, e cujo nome era a metáfora certa, ‘Eclipse’. A cem metros do chão, contemplávamos da nossa mesa a imensidão de quarteirões às escuras, imaginando essa cidade deserta nos quatro anos do Khmer Rouge, quando três milhões de residentes foram expulsos, deixando para trás ruas em silêncio e candeeiros que acendiam para ninguém. A capital majestática, evacuada em poucas horas, passou à maior cidade-fantasma da época moderna, na qual, porém, um dos lugares nunca fechou, o liceu de Tuol Sleng, convertido em centro de tortura. Era a minha tarefa para o dia seguinte, entrar nesse epicentro dos fantasmas para falar das imagens lá expostas. Mas com o avançar da noite, os nossos propósitos ali tornavam-se menos evidentes. Se a Europa virara esse imenso cemitério de que Paul Valéry falou depois da guerra, uma incomensurável Elsinore que nos condenava a ter de olhar para milhões de fantasmas a toda a hora, não terá sido isso mesmo que nos impeliu a viajar quase meio mundo desde Berlim, nós, os póstumos, em busca de mais fantasmas?
Com o amanhecer, aparecemos na antiga escola nos subúrbios, edifício trivial e arruinado entre a vegetação e o arame farpado. O trânsito entupido pelos autocarros que expeliam, invariavelmente, europeus de meia-idade. À entrada, os guias do museu do genocídio advertiam que, de noite, e mesmo a quatro décadas de distância, ainda se ouviam pedidos de socorro a sair das câmaras de tortura, e os guardas avistavam espectros a agitar árvores e a revirar os arquivos. Os fantasmas não eram metafóricos, nem assinalavam uma injunção ética — todos os dias era-lhes deixada comida no chão, em pequenos pratos. A única fotografia que fiz foi antes de entrar, a uma placa que apelava aos visitantes a partilharem nas redes sociais imagens do lugar onde foram executadas vinte mil pessoas. Nas antigas salas de aula, uma cama ferrugenta ainda guardava os instrumentos de tortura — uma fotografia, ao lado, mostrava um cadáver carbonizado e acorrentado deitado nela —, para além de estátuas a ilustrar as poses nos interrogatórios, pinturas a descrever o processo, e tantos ossos. Ninguém disse nada no grupo, cada um seguiu o seu caminho. O reencontro, no jardim central, foi para eu falar dos seis mil retratos dos suspeitos, fotografados assim que chegavam. Acusados de serem intelectuais ou espiões, eram-lhes retiradas as vendas dos olhos, desatadas as mãos, e o flash disparava, sabendo-se a instantes da tortura e da morte. Encontram-se idosos, crianças, e mães com bebés nestas imagens, cada cara olhando-nos fixamente, ou antes, transfixadamente. Os painéis tornaram-se um objecto ubíquo nos discursos sobre fotografia e sobre violência, uma referência universal para críticos, artistas e curadores. Começo a falar em público no pátio, quando me agarram o braço e sussurram ao ouvido: “Só sobreviveram sete pessoas à tortura. Os únicos ainda vivos são estes dois senhores aqui ao lado, a olhar para ti.” Que dizer, nesta situação? E que raio faço aqui? Os dois senhores voltaram para as bancas onde vendem os seus livros de memórias e se deixam fotografar com os turistas. De súbito, pareceu insuportável essa distância para os ensaios teóricos sobre o tema, absurda como a ideia de que as mesmas fotografias, nos anos 90, eram mostradas em vários museus de arte nos EUA. Eu, irremediavelmente estranho e estrangeiro aqui, tomado de uma espécie de repulsa pela rotina académica de recorrer aos mesmos autores para citar aos impressionáveis, saturado do pedantismo intelectual de regurgitar os mesmos debates sobre os limites da representação, a linguagem danificada, e a aporia da imagem. O desajuste de todas as soluções lembrou-me o repórter americano Philip C. Winslow pelas aldeias do norte de Angola, quando foi informado pelo intérprete que não existia equivalente local para “jornalista”, e por isso utilizaria a expressão (sintomaticamente fantasmática, também ela): “brancos que aparecem, fazem muitas perguntas, e depois vão-se embora outra vez.”[1] Como se há-de baloiçar esse constante sobe-e-desce entre o sensacionalismo e o puritanismo, não sei. Discordo da ideia de Coetzee sobre “levar-se a sério a proibição dos sítios proibidos.”[2] E, no entanto, como sempre, falou-se de tudo isso, e teria de se falar de tudo isso. Falou-se de Rithy Pahn, falou-se de Susan Sontag, falou-se de Paul Celan, falou-se de Georges Bataille, mas aquilo que me ficou de entre os fantasmas foi a relação promíscua entre certos eventos académicos e o turismo obscuro. O trauma como destino, por dever de memória, por imperativo histórico, ou por princípio ético, liga-nos a uma engrenagem impossível. Talvez sejamos nós quem assola os espectros.
[1] Philip C. Winslow, Sowing the Dragon’s Teeth: Land Mines and the Global Legacy of War, Boston, MA: Beacon Press, 1997, p. 167.
[2] J.M. Coetzee, Elizabeth Costello, London: Random House, p. 173.