Daniela Rôla — Tudo é amanhã (Portrait of Jennie)

— When is tomorrow, Jenny?

— Does it matter? It's always.

 

“Science tells us that nothing ever dies but only changes, that time itself does not pass but curves around us, and that the past and the future are together at our side forever.”

Estranho filme este, que nos pede para abandonarmos toda a racionalidade, mas que abre num prólogo que apela à ciência e à filosofia. Um filme estranho de um homem estranho, esse William Dieterle em coabitação com o seu decalque alemão Wilhelm Dieterle, um actor discípulo de Max Reinhardt transformado, uma vez emigrado para os Estados Unidos, em realizador de versões alemãs de filmes produzidos em Hollywood (também eles filmes-decalque, como que cobertos de uma segunda camada, composta por uma versão estranha ao original, uma outra língua, uma dissonância de espaço pelo som) e que, depois de vários anos de uma carreira com poucos títulos dignos de registo (ainda que um deles muito digno de registo, um Capra germânico chamado The Devil and Daniel Webster, bem como uma pequena pérola chamada Jewel Robbery), acabaria, talvez porque tocado pelos efeitos da II Guerra Mundial, por descobrir uma efemeridade e fragilidade das relações, um manto de incerteza (neblina) que cobre vidas e que cobre a imagem. Porventura terá sido este o caminho que o levou até Selznick, que em Portrait of Jennie encontramos em estado febril, tomado por um desígnio de filmar esta história de puro sonho, sem certezas e sem racionalidade, imune a coisas mais terrenas como os desvios orçamentais que se iam registando. Será que podia adivinhar o desastre financeiro final (o filme não recuperou na bilheteira mais do que um quarto dos seus custos)? Será que foi alguma vez credível que este filme fosse um sucesso junto do público? Uma história enredada em morte, entre o material e o imaterial, a cidade real inundada de fantástico, Jennie Appleton (Jennifer Jones) que arrasta o pintor Eben Adams (Joseph Cotten) — e Selznick — para o naufrágio final (com o afundar da companhia de produção de Selznick que significou o fim da sua carreira nos Estados Unidos). Um filme que é, de certa forma, a morte de Selznick, mas que simultaneamente o entroniza, pela sua tenacidade enquanto produtor, capaz de arriscar tudo pela obra em que acredita. É também uma das maiores realizações do director de fotografia, Joseph H. August, que morreria em plena produção, nos estúdios de Culver City.

Portrait of Jennie é, como anuncia o seu prólogo, um filme que corre ladeado pelo passado e pelo futuro, num presente que não existe, oferecendo uma verdade que não está ali no ecrã, mas no próprio espectador. E desse retrato que dá nome ao filme virá uma proposta de irrealidade e irrelevância da morte. O que conta é, afinal, algo de muito mais poderoso que está presente naquele retrato.  

De que é feito Portrait of Jennie? De uma série de encontros entre Jennie e Eben, num lugar e tempo enganadoramente concretos, do contraste de branco e negro que desenha a skyline de Nova Iorque e da neblina cinzenta que parece envolvê-los, baralhando as noções de espaço em que as diferentes personagens se movem. Jennie surge sempre da sombra, nasce a partir dela, envolvida pelo contorno da cidade (a linha que separa a terra do céu), fixando-a no seu primeiro retrato (ainda antes do retrato que Eben pintará dela). O envelhecimento de Jennie vai acontecendo através de uma alegria e espontaneidade que se vão perdendo. Ainda que Selznick tivesse a dado momento pensado em dar a Shirley Temple o papel de Jennie, para depois ir rodando o filme em vários anos, de forma a permitir um envelhecimento real (um pouco à semelhança do método Linklater), Jennifer Jones consegue transmitir todo o amadurecimento através do seu corpo, do seu rosto e da sua voz, uma seriedade adulta que se vai instalando nela, abandonando a jovialidade que era a característica de uma outra personagem de um outro filme de Dieterle, a sua Singleton de Love Letters, uma personagem absolutamente espontânea, sem freios, nunca temendo dizer abertamente aquilo que sentia.

A transição entre a Jennie criança e a Jennie adulta é, em grande medida, operada pela música que ela vai cantarolando no primeiro encontro com Eben, uma música que fala já de “fim”, ligando passado e futuro num tom inquietante — “Where I came from nobody knows, where I am going everyone goes” (Eben teima em alterar o final para “everything goes”). Este tema cantado por Jennie lembra a lengalenga que ouvimos em Marnie, de Alfred Hitchcock, uma cantilena que soava a sentença (“call for the lady with the alligator purse”), o que poderá não ser uma coincidência, já que ambos os filmes têm Bernard Herrmann como compositor. Aliás, David Thomson, no seu “Have You Seen?”: A Personal Introduction to 1000 Films, é certeiro quando vai mais fundo nesta ligação de Portrait of Jennie a Hitchcock, ao caracterizar o filme de Dieterle como obra fortemente inspiradora para o realizador inglês, particularmente em Vertigo. Esta influência é notória no verde da sequência da tempestade, na escada em caracol que conduz ao topo do farol, na personagem de Jennie como mulher misteriosa e fugidia que escapa por entre os dedos, enredada no seu próprio passado e condenada por ele, no retrato pintado por Eben (que remete para o quadro de Carlotta Valdes).

A cada encontro com Eben, Jennie surge como que transportada de uma outra era, vinda misteriosamente da sombra, o seu corpo e a sua roupa modificados pelo passar do tempo. Mas um olhar mais atento irá reparar que esta “desadequação” em relação ao seu tempo não é menor em Eben, quase exclusivamente rodeado de pessoas envelhecidas, já no Inverno da vida (o seu amigo Gus será a única excepção). Jennie vem de um Inverno feito de neve, uma figura idílica de patins, como que saída de um postal ilustrado (também ela vinda de um “mundo velho”), para salvar Eben do “Inverno da mente”. Já quase no fim do filme, no derradeiro encontro antes da cena final no farol, Jennie fala do tempo de Verão que tem passado com a tia, um Verão que tinha sido solitário, indicando que há um Verão pleno (paralelo ou fantasma) ainda não realizado, que pertence a Jennie e Eben.

Se Eben, até ao encontro com Jennie, vivia no tal “Inverno da mente” de que ele fala (o receio da irrelevância, a fome de inspiração, o tal “procurar algo que não sabe o que será, só sabendo quando se encontra”), será Jennie quem provoca a revolução que levará ao “Verão da mente”. Curiosamente, no já referido Love Letters, a mesma Jennifer Jones, desprovida de memória, escolhia o dia 21 de Junho para celebração do seu aniversário, o primeiro dia de Verão (“Here I was born” – diria Madeleine Elster). Jones nascia com o Verão, e por ela Joseph Cotten pode, em Portrait of Jennie, chegar ao Verão — este é apenas um dos vasos comunicantes entre Portrait of Jennie e Love Letters, tornando claro que estas não são obras disjuntas na filmografia de William Dietrele.

Na verdade, apesar do forte cunho de David O. Selznick em Portrait of Jennie, é possível notar o esboço de um traço de Dieterle, que liga os dois filmes que partilham o par romântico Jennifer Jones-Joseph Cotten. Já em Love Letters existia o retrato de Jennifer Jones, não enquanto pintura num ateliê de artista ou num museu, mas na imobilidade de traços dramáticos fortíssimos de Jennifer Jones, com o seu olhar perdido no vazio, o vestido branco manchado de sangue, segurando na mão uma faca. Um falso retrato bem mais cru do que aquele criado por Vincente Minnelli em Madame Bovary, quando Jennifer Jones se contemplava no espelho do salão de baile, no seu momento de triunfo. Ainda em Love Letters, nesse par improvável feito da energia de Jones e do estatismo de Cotten, encontra-se um momento de rasgo de Dieterle, na câmara que mostra o tacão partido de Jennifer Jones, ascendendo pela perna à boleia de um foguete na meia de nylon e terminando no beijo apaixonado que o casal partilha. Dieterle encontrou em Joseph Cotten um herói romântico improvável, capaz de oferecer simultaneamente uma firmeza de carácter e uma vulnerabilidade que o tornam peça essencial na construção de Portrait of Jennie. Tal como em Love Letters, I’ll Be Seeing You ou September Affair, Cotten oferece a certeza de que ele não se deixará seduzir levianamente, antes oferecendo o seu coração totalmente, o que o torna desde logo um candidato a sofrer as maiores mazelas sentimentais.

Jennie surge na vida de Eben para o arrastar para a sua morte (ou vida?), num caminho que não é mais do que um processo de enamoramento. Algo que só podemos compreender ou aceitar se nos rendermos a uma religiosidade aqui presente, representada também pela Mother Mary of Mercy, desempenhada por Lillian Gish, que conhece os pormenores da morte de Jennie e que conduz Eben ao encontro final em Land’s End. São os Cloisters do Metropolitan Museum a desempenharem o papel de convento, numa arquitectura de traça europeia que pareceria totalmente deslocada em Nova Iorque, mas que não é cenário de estúdio, é o real a servir de faz-de-conta, o que só contribui ainda mais para o desacerto espacial que empresta estranheza a Portrait of Jennie.  

Sendo um bom exemplo da influência da estética do realismo poético no cinema americano — aqui sublinhando o lado “poético” —, Portrait of Jennie mostra-nos a dado momento Jennie e Eben passeando pela cidade, uma Nova Iorque que parece estar incrivelmente vazia, levando a que a cidade real se faça cenário, adoçando-a com uma camada de artificialismo (algo que, aliás, sucede por diversas vezes durante o filme, nomeadamente quando a paisagem é coberta de um filtro em rede, dando a aparência da textura rugosa de uma tela, ou sempre que as personagens são recortadas como se elas próprias fossem arranha-céus, numa sobreposição de cimento e humano). A possibilidade de fazer sentir que os dois se encontram sozinhos numa cidade habitualmente repleta de pessoas é, naturalmente, expressão do amor que os une (um casal que se ama basta-se a si próprio, ou pelo menos sente essa potencialidade), mas também uma via para o onirismo, fazendo duvidar da verdadeira existência do próprio Eben. Na verdade, dificilmente poderíamos imaginar seres mais solitários do que Eben e Jennie, sem relações familiares (ambos perderam os pais), sem nomes que habitem as suas vidas. As únicas relações que Eben mantém além de Jennie têm cariz profissional (os seus conselheiros artísticos), o que só reforça esta solidão. Tal resulta na permanente impressão de que aqueles dois seres que caminham juntos poderiam ser meros seres imaginados, poderiam não ter existência concreta na selva de cimento que é Nova Iorque. Quem nos garante que apenas Jennie é de índole fantasmática? Eben não toma, afinal, parte do mundo dela? São o tempo e o espaço que se misturam, o tempo que derrete com a neve, uma fluidez que faz da cidade real algo de irreal. Eben mostra-se algo desajustado, na sua elegância démodée. A senhoria e a amiga comentam “he is actractive and a gentleman besides”, enquanto uma certifica a outra de que ele não pinta “women in the…” — naquilo que elas omitem está a sua “integridade”, de não pintar mulheres nuas (afinal, um cavalheiro), assim preservando a moral da casa.

Mergulhados nesta constante perturbação do tempo e do espaço, resta a seguinte questão: quem são os fantasmas? O que dota estes seres de densidade humana, o que os torna palpáveis, concretos? Serão eles os vivos, porque o amor os despertou para uma vivência real (uma transformação que se opera em Eben e Jennie de forma semelhante)? 

Regressemos, contudo, à essencialidade do filme, o retrato do título. É por ele que Eben se “realiza” como artista, é ele que preserva algo que não é apenas a imagem de Jennie, é também parte da sua alma — daí Matthews e Spinney reconhecerem que Eben conseguiu, finalmente, atingir algo que nunca tinha logrado atingir enquanto artista. É o confronto com a morte/o fim que, afinal, permite atingir esse “algo mais”, a precipitação para a tragédia que o leva ao sublime.

Por isso a salvação final de Eben no naufrágio, o facto de ele permanecer vivo, não contribui para o trazer de volta ao mundo do palpável, do concreto. A sua salvação tem um estranho sabor a morte, sente-se como erro narrativo, e a sua consagração cheira a algo de póstumo (repare-se como, com a aproximação do final do filme, Eben começa a ser igualmente tocado pela sombra). Se a sua vida tinha um perfume de morte, a morte como encontro com o propósito da sua arte, a sua sobrevivência após o naufrágio parece antes ser uma morte que tem como único eflúvio de vida o lenço que Spinney ainda segura nas mãos (e existirá objecto mais apto a carregar divinos eflúvios do que um lenço?). Levando um pouco mais longe as considerações sinestésicas, a cor do retrato de Jennie no final é um selo de morte que é definitividade (Land’s End — o fim da terra), do mesmo modo que a cor em Bonjour Tristesse, de Otto Preminger, era atributo reservado à vida, selado pelo preto e branco da morte. 

“There is no life, my darling, until you love and have been loved. And then there is no death” — é a frase de Jennie proferida no coração da tempestade, uma frase que fica a pairar sobre as cenas finais, prometendo a conquista da imortalidade pelo amor. Se em Gone with the Wind Selznick indicava que a única coisa perene era a terra, aqui ele parece rendido à imortalidade do amor feita arte. E se, até ao momento da tempestade, tudo na relação entre Jennie e Eben foi feito de inefabilidade e efemeridade, nada prepara o espectador para o trovão que acontece, uma entrada do verde forte na tela, das ondas gigantescas, algo que deverá ter tido um enorme impacto nas plateias aquando da estreia que se anunciava em “Cycloramic screen” e “Multi-sound”. É o discurso a abandonar o etéreo e o mistério e a tornar-se carnal — “I want you, not dreams of you!”. E, subitamente, a suspensão do tempo e do espaço (não será isso o amor?), o silêncio e a entrada no farol, um chamamento pelo corpóreo. É a compressão do passado e do futuro, Eben a libertar-se do medo daquilo que medeia entre o ontem e o amanhã.  

Há ainda uma outra personagem que deve merecer especial consideração. Trata-se de Spinney, a personagem desempenhada por Ethel Barrymore, que demonstra um cuidado especial, um tocante afecto em relação a Eben. Apetece adivinhar, por detrás daquele olhar envelhecido, uma derradeira paixoneta pelo pintor, uma forma de se agarrar à vida em tudo semelhante à relação que Eben estabelece com aquele ser fugidio chamado Jennie. “Nobody knows more about love than an old maid” — afirma Spinney, como verdadeira “doutorada em amor”.

É Spinney a real criadora de Jennie, porque é ela quem mostra a Eben que ele precisa de encontrar algo ou alguém, uma forma de introduzir a paixão nas suas pinturas, uma tempestade, uma onda forte capaz de revolver o seu talento e torná-lo frutífero. É pelas palavras de Spinney e através deste amor fantasma que Jennie nasce. Spinney é, portanto, a força motora na criação de Jennie e, por essa via, na criação do próprio Eben. Atente-se nos quadros que ocupam a galeria de arte aquando da primeira visita de Eben, ainda artista esfomeado. A grande tela que preenche o segundo plano, uma paisagem anódina, mas em que há a presença inquietante de uma enorme nuvem anunciando uma tempestade, como que indicando já o caminho a percorrer por Eben. Repare-se, aliás, como, a dada altura, Eben deixa cair o manto de ilusão que ele próprio alimenta, reconhecendo que Spinney não consegue ver Jennie. Ela não vê Jennie, mas o seu olhar alcança outras coisas, pensa na criação e na inspiração, como quando cita o poema de Robert Browning dedicado ao artista Andrea del Sarto.

O paralelo entre amor e arte está latente na história de todo o filme, apetecendo reformular a frase de Jennie como “Não há arte até amares”, ou seja, a arte não é possível sem amor. E a imortalidade é também prometida àqueles que, pelo amor, chegam à arte. Não é um filme próprio para corações endurecidos. É um filme para abraçar a delicadeza dos sentimentos, o inefável, o inexplicável, a fé. Filme religioso? Talvez seja, certamente sê-lo-á para os crentes do cinema.

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