André Dias — Teatro caseiro para moribundos

De entrada, somos lançados na comédia de enganos que é a vida familiar, essa trupe criminal, de política pretensa, seio parco ou copioso em que implacavelmente nascemos. O que em geral logramos na vida é resultado do engano mutuamente desesperado destes e doutros nós mesmos.

É em particular quando procuramos enganar e, com franca alegria, alguém insiste em dirigir-nos e connosco compor as suas cenas, porventura o drama sempre adiado da sua solitária partida, que se dá a inversão do logro. Então, exceto se estivermos quebrados por dentro na nossa estúpida soberania, podemos tentativamente deixar-nos enganar e, nesse movimento de atentos ainda não enrudecidos pelo tempo, apanharmos desprevenida a própria sombra que revela o fantasma que somos.

Só com uma terrível música de acompanhamento, qual requiem antecipado jovial e esperançoso em que alguém em fundo se finda, nos deixamos enlevar ao ponto de nos empenharmos tanto neste pequeno teatro, sórdido e comovente em igual grau, do quotidiano familiar, um de que nos é quase impossível abdicar. E porquê?

É que estes jogos de cena, em que por vezes nem sabemos bem que papel assumir, sobretudo os familiares tétricos em que não podemos deixar de nos ver retro e prospetivamente refletidos, exsudam os fantasmas ausentes e impacientes, quando ainda assim suficientemente ruidosos, fina camada de pó liberta e sedimentada na agitação que representamos uns para os outros.

Até que, de repente, alguém levanta os seus braços de maestro ou ator desavindo, faz silêncio sobre a cena e todos param à escuta da ausência de sinais, solene partida de mais um malogrado membro da trupe (vamos tomando o lugar uns dos outros neste massivo cortejo), o encenador do dia.

Aqui, o fantasma ainda larvar, inesperadamente talvez o mais afoito, senta-se e, com o consolo bonito que lhe vem do seu ser inábil, procura ajudar a partir. As mesmas palavras com que nos desviamos e com que desprendemos os outros são as falinhas mansas da morte, figura que encarnou na marioneta compassiva. Palavras de súbito perdoáveis, sacam uma lagriminha, porque compensadas pelo inesperado floreado de uma mão que também se desprende do corpo hirto que a contém, neste estranho teatro caseiro para moribundos que existencialmente contemplamos no filme Kajillionaire (2020) de Miranda July.

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