Ariadne Nunes — Sem tecto, entre ruínas (Augusto Abelaira)

Em várias entrevistas concedidas ao longo da vida e em prefácios e posfácios que deixou escritos, Augusto Abelaira afirmava escrever sempre o mesmo livro ou, quando muito, os mesmos dois romances que apresentam o mesmo livro sob duas perspectivas diferentes. Cada um dos seus livros pode, assim, ser visto como uma variação sobre o mesmo tema, o que se reflecte na recorrência de imagens e assuntos tratados tanto na sua obra vista enquanto conjunto, como em vários dos romances, com características estruturais próprias que mostram esta ideia de variação sobre uma textura que permanece em acção.

Se Abelaira escreve sempre um único romance é porque, como afirma, “todos eles [os livros que escreve] fluem no íntimo de uma infinita melodia, todos eles traduzem a busca de um mesmo equilíbrio, e em vez de muitos são, não podem deixar de ser, um só, um todo indivisível” (Abelaira, 2023b: 134). A unidade aqui em causa, será, aliás, “uma condição própria da literatura” (Lucotti, 2023: 91): cada texto é expressão de um todo, a que se tenta chegar mas que é inalcançável; são o uno absoluto em que a “própria coisa” e a sua representação coincidem. Segundo Abelaira, ao escrever uma página, o que se vive evapora-se dela, foge às palavras que lá permanecem, deixando “somente um enredo (uma história susceptível de ser recontada por não importa quem) e não um sentido” (2023: 10). Ou seja, fica apenas uma representação imperfeita do que se quis dizer, que obriga a que a busca continue infinitamente.

Para ilustrar esta ideia, o escritor compara um livro que começa a ser escrito a uma estátua à espera de ser moldada, sendo essa estátua “não tanto uma história vivida por meia dúzia de personagens, como um sentido” (2023: 11). O problema é que, no fim, a estátua não corresponde nunca ao idealizado:

Pensas que o encontro com essa estátua será para ti uma revelação, uma espécie de baptismo renovador, o desvendar de um mistério. E pensas que essa renovação se estenderá aos leitores, que eles serão também revolucionados (se não revolucionários), que eles serão impelidos a revalorizar o mundo, pelo menos a tua cidade, esta cidade que ainda não é a cidade do sol (ou das flores, ou de deus — o nome não importa). Mas a estátua que à partida, e através da prática da escrita, julgavas ir encontrar, encontraste-a alguma vez quando terminaste os teus romances? (2023:11)

Esta vontade de absoluto, que consegue concretizar-se pontualmente, encontra-se, como pano de fundo, em todos os livros de Augusto Abelaira, e é figurada por diversos recursos narrativos que se vão, também eles, repetindo de livro para livro, embora sempre com pequenas alterações, a variação que mostra a permanência, e que é também explicitamente reconhecida por Abelaira no prefácio à 2.ª edição de Os desertores (“Prefácio para todas as improváveis edições futuras escrito a propósito da segunda edição”):

os autores menores agarram-se então à ideia de que os seus romances (as diferentes versões do único romance que escreveram), mutuamente se esclarecendo, jogando sempre com as mesmas palavras, mas mudando-as de lugar, alterando-lhes a sequência, e constituindo assim uma nova ordem que se sobrepõe à ordem que cada um deles constituía, falhando por caminhos diferentes, acabarão por renascer, por dizer alguma coisa, por falar ao ouvido dos leitores, por inquietar os espíritos. (2023: 15)[1]

Em Sem tecto, entre ruínas, romance em que me vou centrar, a noção de continuidade é, desde logo, temporal e resulta de, apesar de ter sido escrito entre Maio de 1968 e Fevereiro de 1974 (e publicado apenas em 1978), a sua acção se situar em 1968, o ano mítico das lutas estudantis em França, em que Salazar cai da cadeira e é substituído por Marcello Caetano e em que a Checoslováquia é invadida pela URSS, factos que, à data de publicação do romance, são já passado. O olhar sobre a acção é, portanto, retrospectivo à data da publicação e da leitura pelo público, embora não o fosse à data da escrita. Esta consciência do tempo e do olhar sobre os factos que os altera apenas em função do momento em que são considerados é, aliás, expressamente enunciado no romance, passando-se a narrativa sistematicamente entre o passado e o futuro, ou melhor, entre a imaginação do futuro e a imaginação do que, no futuro, já será passado: “E dentro de sete semanas já teremos regressado. Falaremos a esta mesma hora da viagem. Não duma viagem futura, mas da viagem passada. Não te causa impressão que uma coisa que neste momento ainda pertence ao desconhecido se possa transformar em conhecido?” (Abelaira, 2024: 99)[2].

É uma continuidade da mesma ordem a que existe entre escrita e leitura, explicitamente reconhecida por Abelaira no já citado prefácio a Os desertores: “Até ao momento em que mandam para a tipografia as últimas provas, quantas vezes lêem os romancistas os seus romances? Um número sem conta, decerto. Mas essas leituras não são verdadeira­mente leituras, são ainda uma das múltiplas faces do acto de escre­ver”. Em Sem tecto, entre ruínas, a oscilação da voz narrativa entre a primeira e a terceira pessoas, ainda que sempre com foco em João Gilberto, a personagem principal do romance, pode ser visto como ilustração do mesmo aspecto. Enquanto a primeira pessoa representará aquele que escreve e se conhece interiormente, a terceira mostra João Gilberto a ver-se de fora, a observar-se, como um leitor que lê o que outro (que pode até ser o próprio) escreveu. O recurso é, aliás, explicitamente discutido, “O João Gilberto, eu (porquê esta tendência para me ver de fora, para me ver como se fosse outro, terceira pessoa do singular?)” (2024: 43), em termos que remetem para a continuidade entre o autor-escritor e o autor-leitor enunciada no referido prefácio a Os desertores.

A oscilação de voz narrativa faz, em Sem tecto entre ruínas, par com um outro recurso especificamente abelairiano, a interrupção das conversas entre as personagens por anúncios que vão sendo recitados pelo narrador ou pela leitura de títulos de jornais que vão relatando o que se passa no mundo. A dificuldade de conciliação entre duas esferas — a privada, das conversas entre as personagens e de João Gilberto a falar na primeira pessoa, e a pública, o que se vai passando no quotidiano exterior, João Gilberto a ver-se e a mostrar-se como um terceiro —, que não é mais também do que a impossibilidade de alcançar um absoluto, é ilustrada por este meio.

A própria estrutura circular do livro, em que a cena final repete, com pequenas variações, a que abre o texto, remete para a ideia de continuidade entre tempos, mas em que a repetição (a representação, a leitura, o olhar sobre o mundo e o próprio) só acontece com variação. Ao mesmo tempo, esta repetição põe em questão tudo o que foi relatado — será que o tempo passou de facto e os episódios narrados aconteceram? Ou tudo não terá passado de um sonho de João Gilberto, que nunca saiu da casa de Bastos? A mesma aura de sonho envolve a relação de João Gilberto com Hans e Brigitte, um dos momentos em que o absoluto perseguido por personagens e autor parece ser alcançado, ainda que de forma fugidia, não só por não poder durar como por estar envolta numa sombra de mistério — até João Gilberto se refere a esse encontro como “Um sonho, a Brigitte, o Hans?” (2024: 196) e o narrador terceiro, na mesma página, interroga, “A frescura de Santo Ambroggio que desta vez João Gilberto visitou com a Brigitte e o Hans. Mas visitou mesmo? Ou uma histó­ria inventada?”

O livro mostra-se, além de tudo, debruçado sobre si próprio, quando, quase no fim, nos apresenta o livro que Herculano dos Santos escrevera: que livro é esse, senão aquele que acabámos de ler? (“Publicar o romance do Herculano dos Santos com o meu nome. Ser reconhecido pelos outros, obrigá-los a considerar-me alguém. Publicá-lo com algumas modificações, estas” [2024: 216]).

A realidade é, então, ambígua e fragmentada, e só assim pode ser apreendida ou capturada, como um fantasma fora de alcance, sem que se saiba se existe de facto ou o que significa. A vida e a escrita são um processo contínuo de busca e variação, sempre incompleto, espectral e em transformação, mas a literatura é o espaço em que os homens conseguem, ainda que brevemente, num parêntesis, viver a “magia que lhes aque[ce] o coração acerca de um Futuro” (2023a: 16), que se, na realidade, se apresenta sem saída, na literatura poderá ser de esperança.

 

Referências:

Abelaira, Augusto. Os desertores. Lisboa: Almedina. 2023.

_________. As boas intenções. Lisboa: Almedina. 2023a.

_________. Quatro paredes nuas. Lisboa: Almedina. 2023b.

_________. Sem tecto, entre ruínas. Lisboa: Almedina. 2024.

Lucotti, Eugenio. Bolor e desencanto no romance único de Augusto Abelaira. Tese elaborada para obtenção do grau de Doutor no ramo de Estudos de Literatura e Cultura, na especialidade de Estudos Portugueses. Universidade Ca'Foscari, Veneza e Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. 2023.

[1] Quatro paredes nuas, o único livro de contos de Augusto Abelaira, será talvez aquele em que este mecanismo de unidade / variação está mais presente, não só internamente (a obediência a uma estrutura de diálogo e a repetição de motivos ou frases de uns para os outros – “Uma flor? Um sol? Um pássaro?”) como intertextualmente com os outros romances de Abelaira, repetindo nomes de personagens (Ana Isa, Maria dos Remédios) e imagens (o barco Maria Brenda ou o diário).

[2] O mesmo olhar simultaneamente prospectivo e retrospectivo encontra-se em As boas intenções.

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