Tiago Ramos — O Retorno à Campa: Ugetsu Monogatari (Kenji Mizoguchi)

Inscrito sobre o primeiro plano de Ugetsu Monogatari (Kenji Mizoguchi, 1953) está um texto preambular que informa que a acção se desenrola nas imediações do Lago Biwa, numa aldeia da província de Omi, na segunda metade do século XVI, um período da história do Japão marcado por guerras civis constantes (figura 1). O plano parte de uma posição elevada e traça uma trajectória semicircular que dá a ver a aldeia quase na íntegra. O trajecto da câmara, cujo movimento panorâmico ceifa os terrenos agrícolas da povoação, termina com a entrada dos protagonistas no enquadramento.

Texto inscrito sobre o primeiro plano

Genjuro, Miyagi, e o filho ainda pequeno, Genichi, estão a carregar um carro com peças de cerâmica quando são sobressaltados pelo som de disparos. “Espiões estão a ser executados”, diz Genjuro à esposa que, alarmada, pega no filho ao colo. A guerra civil que tem lavrado a província está cada vez mais próxima. Apesar do perigo iminente da aldeia vir a ser pilhada, Genjuro está mais apreensivo com a possibilidade de perder a oportunidade de lucrar com o clima belicista que fez florescer o comércio em Nagahama, a cidade mais próxima. As perspectivas de venda de cerâmica na cidade são animadoras, tanto que o agricultor equaciona poder vir a subsistir do seu trabalho enquanto oleiro.

A ambição de Genjuro é modesta quando comparada com os sonhos de glória de Tobei, o cunhado, que entra em cena, em conjunto com a esposa, Ohama, no final do segundo plano. Tobei sai de casa, corre na direcção de Genjuro, e roga-lhe para que o leve consigo para a cidade, onde planeia oferecer os seus serviços a um chefe militar que aceite fazer de si um samurai. Ohama censura as aspirações do marido, caracterizando-as de inconcebíveis e fúteis. A cena termina com Genjuro e Tobei a carregarem o carro rumo a Nagahama, deixando as esposas entregues a si próprias. Esta dinâmica repetir-se-á ao longo da intriga: movidos pela cobiça, Genjuru e Tobei ignoram as advertências das mulheres, que os instam a ficarem junto delas e da comunidade a que pertencem.

Com cerca de dois minutos de duração, e composto por quatro planos, este episódio sintetiza a proposta formal de Mizoguchi, que privilegia o plano-sequência, o travelling e o raccord, assim como estabelece os alicerces da narrativa. O contexto sociopolítico, a paisagem, os protagonistas, os traços essenciais das suas personalidades, e o conflito na origem do drama são consolidados com uma economia exemplar.

Encarregue do filho, Miyagi é visitada pelo chefe da aldeia que a avisa de que a avidez do marido em tempo de guerra poderá vir a ser a causa da sua ruína. Porém, quando Genjuru retorna a casa momentos depois e lhe pede para sentir o peso das moedas de prata que ganhou da venda das vasilhas, Miyagi fica deslumbrada. Dada a condição do casal, que vive do que cultiva, e a distância a que se encontra das redes de comércio, é possível que aquelas tenham sido as primeiras moedas de prata que alguma vez tiveram nas mãos. Assim sendo, Miyagi apenas comunica ao marido os conselhos do ancião quando percebe que a sede de dinheiro de Genjuru não foi saciada. O marido quer fazer mais peças e voltar ao mercado o quanto antes, independentemente dos riscos. Miyagi é caracterizada como o contrapeso de Genjuro – ela é uma força centrípeta, enraizada no lar e na comunidade, ao passo que ele segue um impulso centrífugo que o leva a negligenciar o eixo familiar em benefício da descoberta de novas oportunidades.

A guerra que se avizinhava invade a aldeia, uma noite, com a chegada das tropas de Shibata Katsuie, que pilham as casas e raptam os homens para os escravizar. Genjuru, Miyagi, Genichi, Ohama e Tobei, que, entretanto, retornou vexado de Nagahama, porquanto foi rejeitado por ser um camponês sem o arsenal indispensável a um guerreiro, fogem para a montanha para escapar aos samurais. Contudo, a preocupação de Genjuro não é o bem-estar da família. O protagonista tem a mente fixa no forno e nas peças de cerâmica que deixou a cozer. A ânsia de saber se as vasilhas ficaram cozidas leva Genjuro a deixar a família e a precipitar-se rumo à aldeia, onde ainda podem estar tropas. Miyagi segue-o e o casal escapa sem ser visto pelos samurais em retirada. A aparente boa-fortuna dos cônjuges é redobrada quando descobrem que as peças estão em perfeita condição.

Se conforme Miyagi menciona, o marido e o irmão se esforçaram até ao ponto-limite de colocarem as almas nos fornos, então Genjuro e Tobei, com as vasilhas agora finalizadas, estão prontos para vender o produto das suas almas no mercado.

De modo a evitar cruzar-se com as tropas, a família coloca as peças de cerâmica numa embarcação e cruza o Lago Biwa rumo a Omizo. Do nevoeiro que forra as águas plácidas do lago surge um outro barco que navega sem ninguém ao leme (figura 2). O barco vira-se na direcção do bote da família e Miyagi, aterrorizada pela visão do que assume ser um barco fantasma, diz estarem diante de um espectro. No entanto, uma voz humana responde-lhe, a voz de um barqueiro moribundo que diz ter sido atacado por piratas. A última coisa que o barqueiro faz antes de morrer é pedir que Miyagi e Ohama sejam protegidas.

Avistamento do barco desgovernado

O encontro com o barqueiro carontiano é um episódio decisivo porque é no seu seguimento que a família se desintegra. Para proteger o filho e a mulher de um possível ataque pirata, Genjuro deixa-os na margem do lago e diz-lhes para regressarem a casa onde, dentro de dez dias, voltarão a encontrar-se. A última coisa que Genjuro diz à mulher antes de partir e, sem saber, antes da morte desta, é que voltará com uma fortuna em moedas de prata. Ou seja, face ao apelo do barqueiro para proteger Miyagi, o protagonista abandona-a novamente e deixa-a entregue à sua sorte.

O motivo da partida e da viagem é retirado de “A Casa nos Caniçais”, um dos contos de Ugetsu Monogatari (1776), o livro de Ueda Akinari que inspirou o filme de Mizoguichi. Neste conto, um homem deixa o lar em busca de fortuna, mas encontra, acima de tudo, adversidades no retorno a casa. Uma guerra irrompe, as riquezas que conquista são roubadas, e fica doente durante a viagem de volta. Quando a odisseia termina passados sete anos, o homem descobre que a sua aldeia natal já não existe, ou pelo menos não com os contornos que tinha quando partiu.

Entretanto, a chegada ao mercado de Omizo consuma o rompimento das relações familiares. Genjuro, Tobei e Ohama estão juntos até que a Senhora Wakasa, uma jovem bela, seguida de uma aia idosa, atravessa calmamente a confusão do comércio local. Os trajes e a maquilhagem diáfana, assim como o passo sobrenadante, caracterizam-na, de imediato, como uma aparição. Wakasa e a aia abordam Genjuro que, sentado, está a vender peças de cerâmica. O primeiro plano do campo/contracampo que se segue parte da perspectiva de Wakasa. O picado acentuado faz de Genjuro uma presa fácil, uma figura patética que fica espantada quando cruza o olhar com a Senhora Wakasa (figura 3). Por se tratar de um plano contrapicado, o contracampo, que corresponde ao ponto de vista de Genjuro, reforça o poder esmagador da beleza e do estatuto social de Wakasa.

Troca de olhares entre a Senhora Wakasa e Genjuro

A maneira como Wakasa e Genjuro são enquadrados, nesta e noutras cenas, cria a sensação de que o camponês está enredado. Assim sendo, para Mizoguchi o sortilégio que Wakasa lança sobre Genjuro expressa-se, desde logo, por via da composição dos planos.

Ainda sobre o feitiço, nenhuma informação é veiculada no sentido de explicar a razão pela qual o camponês é o alvo de Wakasa. A chave para essa questão pode estar nas palavras de Miyagi. Se é verdade que Genjuro é, num plano metafórico, desde o fabrico da última leva de peças de cerâmica, um homem sem alma, então o camponês é um recipiente vazio, uma vasilha humana pronta a ser preenchida e possuída pelo fantasma.

Imediatamente a seguir à interacção de Wakasa e Genjuru, Tobei foge com parte do dinheiro das vendas. A sua intenção é comprar uma armadura, uma lança e uma espada que lhe permitirão ingressar numa companhia militar. Ohama segue no encalço do marido e acaba numa área remota da cidade onde é atacada por cinco samurais que a levam para um templo budista e a violam. Ou seja, Ohama é assaltada por um grupo de homens que pertencem à classe a que o marido sonha ascender. Um grande-plano, um recurso raramente empregue durante o filme, enquadra o saco do qual um dos samurais retira as moedas que atira para junto do corpo estendido de Ohama, após a violação (figura 4). A ênfase no saco intensifica a ignomínia de Ohama e sublinha a corrupção inerente ao dinheiro, um dos temas centrais do filme. Além disso, este grande-plano faz parte de uma estratégia narrativa circular, assente em leitmotivs visuais. O saco é destacado porque é reminiscente da bolsa de que Genjuru retira as moedas de prata que dá a Miyagi e porque, mais tarde, um saco idêntico irá desempenhar um papel importante.

Saco de moedas de pratas

O episódio da violação de Ohama marca um ponto de viragem. Daqui em diante cada membro da família está por sua conta. Somente nos instantes finais é que parte dos familiares se reencontram, embora seja claro que a unidade de outrora se perdeu.

Genjuro ainda tem Miyagi em mente quando visita uma loja de tecidos com o objectivo de lhe comprar um kimono digno de uma mulher de classe social elevada. Um plano na primeira pessoa, que consiste numa panorâmica que passa em revista os kimonos em exposição, é utilizado para integrar a subjectividade de Genjuro no enunciado. O plano subjectivo e a banda sonora pautada por harpejos sinalizam que as imagens que se seguem são um devaneio que o protagonista encena na sua mente.

Nesse sonho lúcido, Miyagi surge em contraluz, como um vulto. Ela entra em casa e descobre que o marido lhe comprou kimonos magníficos. Genjuro permanece sentado, deliciado com o deslumbramento da mulher. O protagonista desperta do devaneio com a entrada de Wakasa e da aia em cena, uma coincidência que demonstra como a aparição rasurará a memória de Miyagi da mente de Genjuru o que, como corolário, levará à morte e fantasmagorização da sua mulher. 

A aia convida Genjuro a acompanhá-la e à Senhora Wakasa até à propriedade dos Kutsuki, um solar que pertencera ao pai da jovem, um dáimio morto por Oba Nobunaga. Filmado à entrada do pátio, o primeiro plano da propriedade figura duas portas abertas, embaladas pelo vento. Embora as portas se abram e fechem, aparentemente ninguém as atravessa. As portas de madeira danificadas, a vegetação selvagem, e o desarranjo da cobertura de palha que protege a entrada do solar são indicativos de uma degradação consequente do abandono. O plano seguinte retrata as sombras das três personagens a atravessarem o pátio. As suas sombras são projectadas num muro vestido de canas, flores, arbustos e outros tipos de vegetação baldia (figura 5).

As sombras atravessam o pátio

O quadro das portas a abrirem-se e a fecharem-se como se algo invisível passasse por elas e a figuração das personagens por via das suas sombras assinalam que a entrada na propriedade representa uma passagem para uma realidade oculta. Assim sendo, inadvertidamente ou não, Genjuro está a transgredir normas sociais e ontológicas. Em primeiro lugar, ao deixar-se ser seduzido, ainda para mais por uma mulher que tem uma posição social superior à sua, e, em segundo lugar, ao entrar numa mansão assombrada.  

As paredes delapidadas e a vegetação selvagem desaparecem à medida que as personagens avançam. O solar é restituído à glória do passado pela mente de Genjuro que, devido ao feitiço de que é objecto, vê o que o rodeia de acordo com os desejos da Senhora Wakasa que, quando aparece pela primeira vez no interior da habitação, é retratada como uma sombra que ganha um corpo. Neste momento, tanto a banda sonora composta por flautas japonesas quanto a iluminação rarefeita enfatizam o ambiente onírico.

A postura das personagens e a posição da câmara em relação aos seus corpos realçam que Genjuro está à mercê da aparição. A impressão de captura acentua-se em dois planos que partem da posição de Wakasa e da aia – em ambos os enquadramentos Genjuro é o objecto do olhar. A disposição triangular das personagens e o favorecimento do ponto de vista das aparições informam-nos que Genjuro está enleado. O plano que privilegia a perspectiva de Wakasa desdobra-se, sem corte, num plano inteiro ligeiramente picado que capta o movimento serpentino do fantasma, que se atira sobre os braços de Genjuro num gesto simultaneamente suplicante e predatório. O camponês acolhe-a e acede, ainda que tacitamente, ao pedido matrimonial que Wakasa lhe faz. O feitiço é selado pela aceitação do pedido e pelo contacto físico entre o vivo e o espectro. Mais tarde, será a inscrição de um texto sagrado sobre o corpo de Genjuro que quebrará o sortilégio.

Na sequência seguinte, Wakasa dança e canta uma música sobre dois amantes que juram amar-se durante um milénio. O cantar de Wakasa invoca o fantasma de Katsuki, que se manifesta por via de prantos que só os espectros conseguem entender. Ao contrário de Wakasa e da aia, o fantasma de Katsuki não tem um corpo visível. O fantasma utiliza o seu kabuto, o capacete usado pelos samurais, que se encontra exposto num pedestal, como mediador entre a realidade habitada por Genjuro e Wakasa, e uma outra dimensão invisível do real (figura 6). Subjacente está a noção de que o objecto que Kutsuki possuiu em vida contém um vestígio de si depois da morte. Como tal, o kabuto não só o representa por metonímia como é uma extensão do morto que ainda integra o mundo dos vivos e que, por isso, serve de mediador com o além-túmulo. Portanto, existe um outro plano do real, fora do espaço de representação do filme, habitado por fantasmas.

Kabuto de Katsuki

Conforme a aia indicará numa cena posterior, Wakasa morreu sem ter conhecido os prazeres da carne, pelo que o seu retorno ao mundo dos vivos foi motivado pelo desejo de realizar, na morte, aquilo que não experienciou em vida. Ou seja, os fantasmas são capazes de ocupar dois planos do real, a esfera dos vivos e dos mortos. No entanto, acção dos fantasmas sobre o domínio dos vivos altera a natureza da realidade habitada pelos mortais – prova disso é o espaço ontologicamente poroso do solar Katsuki, um espaço que se encontra entre um cá terreno e um lá fantasmal.

Por esta altura, o estado de rêverie toma conta da acção. Como tal, faz sentido que depois da invocação do fantasma de Katsuki um plano figure Genjuro a dormir, possivelmente depois de se ter unido a Wakasa. Durante este trecho, a começar pela cena em que Genjuro repousa, a banda sonora, por via de harpejos e sons dissonantes, enfatiza o onirismo dos acontecimentos. Wakasa concretiza os sonhos do protagonista. A cena que se desenrola no jardim junto ao Lago Biwa confirma-o. O êxtase de Genjuro é de tal modo inebriante que o protagonista colapsa repetidamente sobre a relva, afirmando, inclusive, que não se importa que Wakasa seja um fantasma, visto que ela lhe deu o Paraíso. Para além do controle sobre a luz, que faz com que o jardim e o lago sejam banhados de raios solares sonâmbulos, a maneira como a câmara enquadra os corpos de Genjuro e Wakasa destaca o enlevo narcótico de dois amantes unidos pelo prazer da transgressão.

A cena termina com um plano aproximado do rosto embevecido de Genjuro. O camponês, estirado de prazer sobre a relva do jardim, é envolvido por Wakasa, que o prende pelo pescoço como um vampiro. Um raccord liga este enquadramento ao plano aproximado dos rostos de Miyagi e Genichi que, amedrontado pela invasão da aldeia pelos soldados, se agarra ao pescoço da mãe. Portanto, a acção retoma os arcos narrativos deixados em suspenso e fá-lo tendo em vista contrastar a experiência edénica de Genjuro com o drama da mulher e filho que abandonou.

Miyagi e Genichi conseguiram regressar depois de terem sido deixados na margem do lago, mas encontram-se indefesos. Embora a degradação social, económica e humana da aldeia permaneça fora de campo, é insinuado que a guerra despovoou o vilarejo, em particular de homens. Sem tecido familiar ou comunitário para a proteger e ao filho, Miyagi é morta pela lança de um samurai que lhe rouba a comida.  

Em contrapartida, Tobei tornou-se num dos soldados sem rumo que lhe mataram a irmã e violaram a esposa. Munido de uma lança e de uma espada que não sabe manejar, a sorte sorri-lhe quando testemunha a morte de Fuwa Katsuhige, um general inimigo de Niwa Nagahide. Gravemente ferido junto a um templo budista, Katsuhige pede a um soldado seu que o decapite, de forma a morrer de acordo com os códigos samurai. A ordem é executada pelo soldado que depois é morto por Tobei, que lhe desfere um golpe pelas costas. A localização contígua a um templo budista e o golpe de lança evocam tanto a violação de Ohama quanto a morte de Miyagi. Estes leitmotivs visuais não só são representativos da preocupação de Mizoguchi em fazer com que a acção tenha uma qualidade circular como também revelam que as ambições de glória de Tobei o transformaram num homem idêntico aos responsáveis pela ruína da irmã e da esposa.

Tobei toma para si os louros de ter matado o general e é recompensado por Niwa Nagahide. Do mesmo modo que Genjuro concretizou o sonho de ter uma vida pautada pela riqueza, Tobei realiza o desejo de se tornar num samurai de renome. São-lhe presenteados cavalos, armas e vassalos que o acompanham e idolatram. Tobei pode finalmente dar expressão ao seu perfil cabotino e fazer-se passar por um guerreiro destemido com um percurso militar consagrado. Todavia, o sucesso de Tobei, ainda que consequente de um ardil, foi conquistado às custas do abandono de Ohama que, entretanto, desde o episódio da violação, se tornou prostituta. Quis o acaso que Tobei, no momento acompanhado pelos vassalos numa viagem rumo à aldeia natal, para onde se dirige com o intuito de partilhar com a família a glória dos seus feitos militares, decidisse pernoitar justamente no bordel onde Ohama trabalha.

Marido e mulher cruzam-se no bordel depois de Ohama perseguir um homem que não lhe pagou o que lhe era devido. O homem que tentava escapulir-se é apanhado e Ohama retira-lhe o saco de moedas (figura 9). O gesto reporta-nos para o momento em que um dos samurais, depois da violação, abriu os cordões da bolsa e lhe atirou as moedas, as primeiras que viria a ganhar. Face à ignomínia que se abateu sobre a vida de Ohama, que culpa o marido pela sua desgraça, a glória de Tobei transforma-se em opróbrio.

O reencontro de Tobei e Ohama

Uma vez reintroduzidas as personagens secundárias, a acção volta a incidir sobre o destino de Genjuro, que irá libertar-se do feitiço de Wakasa. A porção da intriga que retrata o sortilégio de Genjuro também é retirada de Ugetsu Monogatari, desta feita do conto “A Volúpia da Serpente” que, por sua vez, é inspirado numa lenda tradicional chinesa. À semelhança do que acontece no filme, o protagonista do conto é seduzido por uma entidade maligna que se faz passar por uma mulher. A paixão do homem leva-o a ser negligente com a família e a perder a noção do que é o real.

Genjuro começa a despertar do feitiço quando revisita o sítio onde teve a primeira rêverie, a loja de tecidos. Ao aperceber-se que Genjuro estava a comprar kimonos para a jovem que habita no solar Kutsuki, o comerciante recusa o dinheiro e diz-lhe que pode levar o que desejar desde que nunca mais retorne. Na viagem de volta à propriedade, num dispositivo próximo ao Deus Ex Machina, Genjuro cruza-se com um padre que lhe diz que vê no rosto dele a sombra da morte. O padre condu-lo a um templo e oferece-se para exorcizá-lo, aconselhando-o, de igual modo, a não se esquecer dos seus e a voltar a casa.

O episódio que se segue reencena o devaneio em que Miyagi chega a casa e fica maravilhada com os kimonos que Genjuro lhe ofereceu. A ironia é que o sonho de Genjuro é agora uma realidade protagonizada pela amante espectral. As cenas são semelhantes de um ponto de vista temático e formal, uma vez que o movimento da câmara e a disposição das personagens no enquadramento na primeira cena são replicadas na segunda. A concretização do sonho é sucedida pela falência do mesmo. Genjuro confessa a Wakasa que mentiu, diz-lhe que é casado e pai de um menino que deixou no caos da guerra. A Senhora Wakasa não se mostra perturbada pelas revelações. “Deves deixar tudo isso para trás”, diz-lhe o fantasma, numa frase que explicita que o maior perigo de Genjuro, tal como acontece a Ulisses, é perder a memória de quem é e da sua casa.

Wakasa representa ainda a ameaça do eros e da alteridade ontológica e, nessa medida, desempenha um papel semelhante ao de Calipso na Odisseia, de Homero. Tanto Wakasa quanto Calipso concedem aos heróis o deleite da volúpia e ambas propõe outorgar-lhes a eternidade. “Tudo o que desejo é permanecer ao teu lado para sempre, para toda a eternidade”, refere Wakasa no tom suplicante e pernicioso que lhe é característico. Assim sendo, Genjuro sofre uma provação idêntica à de Ulisses na ilha de Ogígia, visto que aquiescer às palavras sedutoras do fantasma implicaria, necessariamente, a transformação da sua condição ontológica e identidade.

Wakasa e a aia cercam Genjuro quando este tenta fugir. O posicionamento da câmara e das personagens diminui o agenciamento de Genjuro no preciso instante em que procura reaver não só o poder de decidir sobre o rumo da sua vida, retomando o retorno a casa, mas tenta, acima de tudo, recuperar o controle sobre o seu espírito. Como tantas vezes faz, Wakasa lança-se sobre Genjuro para o conter, mas é repelida pelas preces budistas que o padre pintou no corpo do oleiro. A redenção de Genjuro dá-se pelo reconhecimento dos males que praticou e pela recuperação da memória, mas a libertação da alma dá-se pelo corpo, matéria a partir da qual o espírito é exorcizado (figura 11).

Gravado na carne

Genjuro consegue fugir, mas colapsa de exaustão e medo num dos pátios do solar. Ao acordar, a propriedade voltou a ganhar as feições decrépitas de quando entrou lá pela primeira vez. O restabelecimento da percepção indica que o sortilégio foi quebrado.

A ruína dos sonhos de Genjuro e Tobei precipita os seus retornos a casa. No que diz respeito a Tobei, no seguimento do encontro fortuito com Ohama no bordel, o samurai despoja-se das armas, dos vassalos, e do título militar e ruma à aldeia natal com a mulher. Assim se conclui o arco narrativo do casal, que é inspirado em “Decoré!”, um conto de Guy Maupassant, um dos autores ocidentais mais traduzidos no Japão na segunda metade do século XIX. O conto segue Monsieur Sacrement, um homem que, desde criança, tem o objectivo de ser condecorado com a Légion d'Honneur. O esforço obstinado em obter essa distinção faz com que Sacrement se descure no casamento, o que resulta no adultério da mulher, que o trai, ironicamente, com um membro da Légion d'Honneur.

Por sua vez, a chegada de Genjuro à aldeia reporta o espectador para “A Casa nos Caniçais”. O protagonista do conto de Ueda Akinari regressa à comunidade de que partiu há largos anos e apercebe-se de que a sua casa é a única que mantém o aspecto cuidado de outrora. O homem descobre que isso se deve à mulher, que esperou por si e zelou pelo lar, impedindo-o de ser delapidado pela acção do tempo e da natureza. O retorno é harmonioso e o casal adormece junto após o reencontro. Na manhã seguinte, o homem acorda e descobre que, afinal, a casa está em ruínas e a mulher morreu. A mulher com quem se deitou foi o fantasma da esposa que o continuou a esperar depois da morte.

Neste ponto, a adaptação cinematográfica é próxima ao texto original. Genjuro chega à aldeia e, num primeiro momento, encontra a casa num estado de degradação avançado. Filmado a partir do interior do casebre, o plano acompanha o movimento do camponês, que chama e procura por Miyagi e o filho. A câmara começa por fazer uma ligeira panorâmica para a direita, depois roda sobre o seu eixo para a esquerda, traçando um movimento semicircular, antes de retornar à posição inicial. Ou seja, este enquadramento exemplifica como as noções de circularidade, viagem e retorno têm mais do que uma importância temática, uma vez que fazem parte da forma do filme.

O vector que determina a direcção da câmara neste plano é Genjuro, que percorre a casa de uma ponta à outra, sai pelas traseiras e volta a entrar pela porta principal. Porém, o cenário mudou entrementes – a casa anteriormente escura e sem qualquer sinal de vida está agora iluminada pelo lume do fogão utilizado por Miyagi que prepara, com paciência, o jantar do marido (figura 12 e 13). Genichi, adormecido, também está presente. O que agora é um sonho, o sonho de estar novamente junto dos que ama no conforto do lar, outrora era uma realidade, uma realidade que Genjuro desprezou devido à ganância.

Um único plano retrata duas dimensões do real. Sem recorrer à montagem, somente através do uso engenhoso da panorâmica, o enunciado imagético expressa a entrada do protagonista, pela segunda vez, num plano onírico da realidade.

Com o desenrolar da sequência, Genjuro, com o filho nos braços, confessa que a mulher tinha razão e que a família deveria ter permanecido unida na aldeia. Miyagi reconforta-o, assegurando o marido de que o importante é que regressou em segurança para junto de si e do filho. No final da cena, após cobrir o marido e o filho com uma manta, Miyagi senta-se sozinha e começa a cerzir. A imagem de uma mulher a tecer, também presente na conclusão do conto de Akinari, evoca Penélope, a mulher que aguarda, com paciência e coragem, pelo retorno de Ulisses.

Genjuro acorda com o chefe da aldeia, o mesmo que advertiu Miyagi de que as ambições do marido eram perigosas, a bater à porta. Ao ver Genjuro chamar pela esposa o aldeão explica-lhe que Miyagi morreu e que Genichi tem permanecido, desde então, consigo. O que o trouxe ao casebre foi, precisamente, o desaparecimento do menino que, sem explicação, sentiu o retorno do pai e voltou para casa.

O epílogo completa o movimento circular da narrativa. A importância da circularidade está patente não só na maneira como o primeiro e o último plano do filme se espelham, mas também nos múltiplos leitmotivs que pontuam a acção e que criam a sensação de que os gestos das personagens encontram sempre uma resposta.

O mesmo acontece por duas vezes no epílogo. Em primeiro lugar, quando Genjuro está sozinho a modelar as peças de cerâmica, num plano que reproduz um enquadramento anterior em que Genjuro e Miyagi trabalham juntos. Em segundo lugar, no plano final que replica aproximadamente o primeiro plano do filme. A câmara começa por estar posicionada rente ao chão e enquadra Genjuro, Genichi e Ohama, que neste intervalo chegou à aldeia com o marido. Ohama dá ao menino uma malga e Genichi deposita-a na campa da mãe. Então, a câmara ascende em direcção ao mesmo sítio de onde descendeu no início da acção e a palavra “Fim” preenche a tela (figura 14).

O fechar do círculo

Assim sendo, o primeiro plano parte de cima da campa de família, a mesma em que Miyagi está sepultada no fim da narrativa. No entanto, a ascensão traçada pela câmara não significa que o fantasma de Miyagi cortou os seus laços terrenos. As últimas cenas são assombradas pela voz de Miyagi, que fala com o marido sem que este a oiça. Miyagi diz que não morreu e que permanecerá ao seu lado agora que Genjuro despertou do feitiço lançado por Wakasa e da fantasia de obter riqueza. Embora não volte a surgir fisicamente, a voz-sobreposta de Miyagi, que comenta o regresso da família à normalidade, causa a impressão de que o enunciado imagético corresponde ao seu ponto de vista e que, portanto, o fantasma está a observá-los a partir do além, um além partilhado connosco. Deste modo, faz sentido que apenas o público oiça as palavras de Miyagi, uma vez que ao morrer ela se transformou também numa espectadora do drama da sua família.

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