Bernardo Diniz Ferreira — Pode o Fungo Fantasma Falar?
Bem sabem os que moram na orla da floresta que — tal como toda essa hoste de aparições, fogos-fátuos, rusalkas, mouras, antepassados e assombrações — os cogumelos chegam silenciosamente em noites húmidas.[1] Uns e outros expressam preferência pela água, pelo subterrâneo, pelo nevoeiro, e, enfim, por um modo de existência dupla: a que se vê, feita para as pessoas que pisam o solo, e a que se esconde debaixo da terra; esta última sempre incomparavelmente mais rica.
Sabem também, porém, que mais assustador do que nos depararmos com qualquer fantasma é encontrar um vizinho vivo que, tendo-se levantado mais cedo, calçado as botas e estando munido de faca e cesto, nos surpreende agora de trás de uma árvore, perigosamente perto da clareira frutífera que só nós julgávamos conhecer. Em momentos assim, conversas sobre cogumelos fazem-se com olhares nervosos e mãos irrequietas; os seus segredos guardam-se em família e confidenciam-se apenas aos amigos mais próximos. À semelhança dessas outras hostes sublimes, os seus espaços mágicos escondem recompensas apenas para aqueles que por eles souberem velar.
Assim, e em bom rigor, não há falta de registo de encontros fortuitos nos domínios do cogumelo. Uns não encontram fantasmas, mas são assombrados pela Musa; caminhando na companhia de Roman Jakobson durante o Verão, Vladimir Mayakovsky recolheu inspiração para o seu épico futurista (e cogumelos para o almoço). Outros encontros são trágicos: noutra Rússia, talvez a floresta nos ponha, durante um passeio micológico, diante alguém cuja ambiguidade entre o desejo e a frieza transforme o amor em triste fantasmagoria da vida — como Sergei Ivanovich Koznyshev faz a Varvara Andreevna no romance de Tolstoi. Tomemos estes dois exemplos como ponto de partida para uma tese possível: não é necessário viajar até à (com a) amanita muscaria da Sibéria ou à psilocybe do México para compreender que os cogumelos são a parte visível de um mundo invisível — pequenos chapéus de fantasmas. Se daí partimos para o exorcismo ou para a poesia, enfim, tal dependerá da tolerância de cada um; da sua fortaleza de estômago.
Nesta Europa, mais micofóbica do que a Leste, intuiu-se primeiramente a natureza maléfica do cogumelo. Albertus Magnus já alertava que os fungos que consumimos bloqueiam os espíritos animais no cérebro e levam à loucura. Mas poderíamos traçar toda uma história de medo destes espíritos não-animais, desde a morte de Claudius às mãos de cogumelos até à representação de um inocente boleto ao lado das forças infernais n’O Carro de Feno de Bosch. No Levítico, os fungos são mesmo objecto de exorcismo — o sacerdote deve ser chamado assim que este seja detectado nas roupas ou nas paredes de casa. Confirmada a sua presença, ou se abandona a casa ou se incinera a roupa. Na cultura popular das séries e dos videojogos, de mortos-vivos a invasores do espaço, na sua estranha ambiguidade que já deixava Lineu estupefacto, o cogumelo faz frequentemente o papel de espelho assombrado da nossa humanidade, tão incompreensível como mortal… como delicioso.
Não faltou quem tentasse domar o cogumelo: em vão os vitorianos fizeram dele poltrona de lagartas falantes, sem conseguirem, contudo, apagar as incessantes visões de outros mundos além do mundo proporcionadas por fungos exóticos — visões que acrescentavam novas camadas desestabilizantes ao que Jonathan Crary apelidaria de “técnicas de observar” do século XIX. Mas fantasmas destes não se exorcizam facilmente. O cogumelo com desígnios malignos é uma tradição Ocidental por excelência; é sempre suspeito antes de ser alimento. No conto “Míscaros” de Agustina Bessa-Luís, em que moedas e bilhetes desaparecem num jogo desconcertante e kafkiano — como espíritos ora cruéis, ora jocosos, mas sempre indiferentes —, é, como o título indica, “tempo de míscaros,” devendo nós rendermo-nos “à predestinação daquela tarde, propícia ao estado orgânico e vegetal, aos fungos e bolores”.
E quanto aos que sabem ler? Quanto aos que, como o sacerdote do Antigo Testamento, fazem de leitores da linguagem de espíritos não-animais, escritas nas linhas tortas e incompreensíveis das hifas? Quanto aos que aceitam o convite, sem se renderem?
Recordámos Mayakovsky, mas se existisse tal movimento, e se esse movimento tivesse uma figura-proa, teria de ser John Cage, o músico que astutamente sublinha a vizinhança entre music e mushroom no dicionário e parte daí à descoberta de sons que tão depressa apontam para o invisível como para o concreto, o sublime ou o corriqueiro (o sublime no corriqueiro); e à descoberta de cogumelos — as suas aulas incluíam passeios pelas matas e florestas nova-iorquinas, perto de Stony Point. Não se tratava, como escreve o compositor em Silence, de imaginar uma ligação entre música e cogumelos (não há, diz), mas do profundo poder misterioso da indeterminação, do acaso, da irrupção repentina de sentido que nasce quando a produção artística é concebida como ‘caça ao cogumelo’. Perguntam-lhe porque escreve música; “não estou interessado em sentidos”, responde Cage, “interesso-me por sons. E faço-o muito bem sentado e quieto à procura de cogumelos”.
Relegamos facilmente os cogumelos para a pilha das assombrações porque o outro do fungo é mais desconcertante do que o outro dos animais e das plantas. É um outro ambíguo, cuja natureza como ser nunca é claramente apercebida por quem o observa, cujo diálogo nos traz notícias de um submundo. O observador insistente, porém, vislumbrará grandes prémios e promessas; exclamará, como no romance de Thomas Mann, “não me venham dizer que não se está aqui a comunicar alguma coisa!”, sublinhando sabiamente que “o facto de se tratar de uma comunicação inacessível, a circunstância de mergulharmos nesta contradição, é também um prazer”. Talvez a linguagem dos cogumelos se restrinja ao modo revelatório, aquele que quando não é inacessível, é incomunicável, e quando não é incomunicável, está reservado aos escolhidos.
Em Empúsio, Olga Tokarczuk imagina como será ser ser-micélio: esse narrador observa colunas gigantes em cima das quais vislumbra uma protuberância falante que pisa, sem ver, discretos microcosmos. A perspectiva destes pequenos seres protuberantes, ligados a redes subterrâneas e à reciclagem das coisas mortas traz-me à memória o poema de Andrei Voznesensky: “com os olhos abertos dos seus pais mortos / olham em frente para outros mundos–– / crianças que, de olhos esbugalhados, se tornam ⁄ periscópios dos mortos enterrados”. O que pensam os cogumelos, no seu jeito telepático e coletivo, quando nos ouvem a falar?; o que dizem entre eles, cochichando como cavalheiros sob os seus derbies?
O assunto da conversa é segredado aos perdidos e aos eleitos; o que quer que seja, fazem-no perpendicularmente através da nossa fina e horizontal realidade. Talvez seja a isso que se refere Tokarczuk quando imagina (no discurso do prémio Nobel) a possibilidade de uma literatura narrada “na quarta pessoa;” uma arte capaz de emprestar voz a um mundo que comummente ignoramos, mas que não deixa por isso de nos provocar um estranho calafrio quando por ele atravessamos. Nem todos pensam assim: quem escreve, geralmente, pensa a uma só voz. E autoriza-se a dizer, como o narrador d’O Doutor Fausto, que “fantasmagorias como essas pertencem exclusivamente à natureza e, especialmente, à natureza malignamente tentada pelo ser humano. No digno domínio das Humanidades está-se a salvo de assombrações deste género”. E, contudo, bem sabem os que moram na orla da floresta…
[1] Puhpowee é a palavra em Potawatomi para a força nocturna que empurra os cogumelos para fora da terra.