Duarte Belo — Há coisas que são verdadeiras
1. No dia 8 de maio de 1989 fotografei um ensaio da peça O Público, de Federico Garcia Lorca, no Teatro da Cornucópia, com encenação de Luís Miguel Cintra. Dois meses mais tarde, 8 de julho, voltei a fotografar a mesma peça.
2. Há um diálogo ambíguo entre o registo documental e o desejo de interpretação daquilo que vemos. É-nos pedido um registo da peça, para memória futura, mas a realidade do trabalho fotográfico em palco pede, por vezes, uma abordagem diferente, difícil de objetivar. Não há neutralidade nesta aproximação.
3. Estas são fotografias que permanecem no meu arquivo fotográfico como uma ilha de estranheza, mesmo dentro deste tema, em que registei várias peças de diferentes companhias de teatro. Nas dezenas de imagens feitas na altura há uma clara diferença em relação a um conjunto de mais de 2.000.000 de fotografias em que o tema dominante é o espaço português, a paisagem e a arquitetura.
4. Regresso a estas imagens com o desejo de lhes acrescentar todo o tempo que entretanto passou. Desenho, intuitivamente, uma exposição imaginária, um espaço, uma cidade fictícia. Um modo de voltar a olhar atores que por ali passaram há mais de três décadas e tanto mundo que entretanto fluiu.
5. De uma modo muito simplificado, podemos dizer que o teatro é representação de um texto, por atores, para o público, num determinado espaço. Talvez a questão essencial seja a representação. A fotografia é o registo visual, a fixação de uma determinada realidade. Não é difícil estabelecer um paralelo entre a fotografia e o teatro. Ambos são representações. Neste jogo de espelhos há a fuga a uma humana convenção de realidade. Relativizamos a questão da representação e observamos que a realidade é composta por sucessivas camadas de complexidade crescente no decurso do tempo. Tudo coexiste sem uma diferenciação estrita. Questionamos conceitos para a conquista precária de uma condição de liberdade. O teatro, a fotografia, são, aqui, a arte da fuga para um tempo e um espaço maiores. Um território ambíguo, espectral, vivo, onde tudo é indistinto. Vislumbramos a essência de um princípio, a origem do tempo e do espaço.
Dedico estas imagens e estas palavras a Luís Miguel Cintra.
Setembro de 2023