Catarina Letria — Onde (não) estão

Era mais um ano e lá se ia o padre, seguido por um rancho de guizos e de acólitos de ténis brancos. Pisava o chão coberto de camélias pastosas que minutos antes, como um código imemorial, lhe indicara que aquela casa pedia — e pagava — a bênção. Cada vez mais o tempo era escasso: desta vez nem tinha ficado para o vinho do Porto. Sentada na borda de um dos cadeirões da sala que só se abria em dia de festa, para o sol não comer o vermelho do papel,  Lai levantou a cabeça e os seus olhos cruzaram-se com o olhar dos antepassados na parede. Ela olhava-os a olharem-na — aquela teoria sobre a Mona Lisa seguir com o olhar todos os que a olham. Olhava-os como quem olha estranhos, retratos num museu, e pensava que ligação teria para com eles tirando a grande ligação que era existir apenas porque eles tinham existido. Tentava encontrar parecenças entre eles e si, reconhecer-se neles, reconhecê-los nela. Estabelecer alguma continuidade entre as pontas opostas do fio, suprimir o fosso temporal. Não encontrava, ficava com uma ponta em cada mão. Questionava-se sobre o que os separava de serem retratos à venda num antiquário, de serem fotografias meramente ilustrativas de uma época histórica.

No andar de cima, junto às grafonolas e às vozes encurraladas dentro de discos pesados, muitos outros tinham passado ao anonimato. Teria feito alguma diferença se os seus nomes tivessem sido escritos na parte detrás das fotografias? Entretanto, os álbuns tirados no Rio de Janeiro tinham sido esvaziados. Como depois de um saque, restavam apenas as molduras, caixilhos de janelas sem vidro.

Chegou-se mais à ponta do cadeirão. Veio-lhe o asco que costumava sentir quando usava sapatos que já tinham sido usados por outras pessoas ou quando dormia em colchões velhos. Naquela casa os colchões eram curtos e tinham as molas partidas: no tempo dos antepassados a estatura dos corpos era outra. Eles, os guardiões, como lhes chamava, tinham querido deixar a sua marca na casa que construíram com dinheiro feito sabe-se lá como no Brasil. Tinham-se posto dentro de um retrato, no alto, pose esfíngica, sempre vigilantes. Era preciso inclinar ligeiramente a cabeça para olhá-los. Teria sido uma forma de fazer as gerações futuras compensarem com o gesto de devoção que se tem num altar o facto de não lhes saberem os nomes? A Lai sempre lhe parecera a maior das ingratidões estarem, os descendentes, na casa que esses antepassados, trisas, tetras, tinham construído, como que usufrutuários de um espaço que não era deles — mas que lhes chegara por alguma lei superior dos deuses, ou pela lógica da herança  —, sem lhes saberem os nomes. E por isso sempre fizera por sabê-los, por repetir os nomes dos antepassados para dentro, para garantir que no ano seguinte ainda os saberia.

Apesar de fazer por não apoiar todo o seu peso na almofada, não conseguia deixar de sentir a cova fofa no cadeirão. Era como se tateasse a presença de corpos que já ali tinham estado mas não estavam mais — e ainda assim permaneciam nas superfícies. Não era medo dos bichos, era nojo daquela flacidez, das carnes moles dos antepassados que adivinhava através dos grumos de espuma do assento. Tinham habitado aquele mesmo espaço nas roupas que traziam nas fotografias e que hoje não eram mais as mesmas. Os guardiões não terão imaginado que Lai existiria um dia, nunca terão imaginado que num domingo de Páscoa, apesar da mesa posta, da toalha de linho, dos talheres de prata, dos copos de risca dourada, os seus descendentes não levariam os lábios à cruz.

© Sann Gusmão

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