Paola D’Agostino — O monstro de Cortázar no escritório
A Volta ao Dia em 80 Mundos é um livro de Julio Cortázar de 1967 onde o autor argentino subverte a lógica da viagem de Jules Verne e transforma o texto (e o dia enquanto texto) num laboratório vivo, onde se investiga aquilo a que Artaud chamava «esse mínimo de vida pensante e em estado bruto — que não chegou à palavra mas que poderia chegar a fazê-lo, se fosse necessário —, e sem o qual a alma não pode viver e a vida é como se já não o fosse» [1].
Logo no início do livro (ou melhor, do dia) aparece um monstro, do qual Cortázar também nos fornece uma imagem:
O monstro protagoniza e assombra um conto breve intitulado Tema para São Jorge [2]. O título do conto soa como uma evocação do santo mártir nobilitado na hagiografia por duas razões fundamentais: a enorme dedicação ao serviço enquanto soldado da cristandade, que lhe valeu uma fulgurante progressão na carreira, e a acção heróica de matar o dragão faminto que assolava de medo a cidade exigindo constantes sacrifícios humanos.
Ora, o dragão que Cortázar lança a São Jorge, como tema — de trabalho, ou de reflexão — é um monstro que reside (literalmente) no trabalho, nomeadamente no escritório do senhor López, para o qual o emprego é fruto de uma mera e inexorável necessidade económica e é, portanto, encarado como um sacrifício. O conto começa assim:
De tempos a tempos, López não tem outro remédio senão voltar a trabalhar, porque descobriu que o dinheiro tem uma desagradável propensão para ir desaparecendo. […] De maneira que este pobre sujeito irrompe em cavernosos suspiros e assina um contrato de um mês com qualquer uma das empresas para as quais trabalhou já muitas vezes temporariamente, e, na segunda-feira 5 do 7 de 66, volta a entrar exactamente às 9 a.m. na secção 18, piso 4, escada 2 e pof, dá de caras com o monstro amável.
O «monstro amável» outra coisa não é senão a materialização da obrigação de trabalhar, do tempo entregue ao trabalho (tempo de vida) e do hábito gerado pela regularidade dessa entrega. Uma espécie de servidão voluntária que, ao ser partilhada com outros «pobres sujeitos» constitui uma comunidade intrínseca à função e alheia à realidade fora do escritório, à vida verdadeira de López, que é a insubmissa inquietação da Literatura. O monstro, para existir, precisa de se alimentar da existência de um «pessoal» (corpo do trabalho) ao qual suga o sangue, embora só López o reconheça, por ser no fundo alheio ao contexto concreto onde se encontra (secção 18, piso 4, escada 2, às 9 a.m.).
E continua Cortázar: «Obviamente que não é fácil aceitar a realidade do monstro amável, uma vez que, em primeiro lugar, não há por ali monstro nenhum, como é que vai haver um monstro no sítio onde o chefe e os companheiros de escritório o recebem com abraços e cada um lhe conta as novidades e lhe oferece cigarros?»
Percebemos assim, de imediato, que na verdade não se trata bem de um monstro, mas mais precisamente de um fantasma:
A presença do monstro é outra coisa, algo que se impõe como que na diagonal ou no reverso daquilo que vai acontecendo nesse dia e nos seguintes, e ele tem de a aceitar ainda que nunca ninguém o tenha visto, precisamente porque esse monstro é um monstro na medida em que não existe, na medida em que para ali está como um nada vivo, uma espécie de vazio que absorve e possui e escuta só o que me aconteceu ontem à noite, López, imagina tu que a minha mulher…
É tão fantasmática, a presença do monstro, que o autor tenta detectá-la: «Se fosse necessário delimitá-lo, ir deitando sobre ele um talco de palavras para discernir a sua forma e os seus limites, às tantas, apareceriam coisas como o cachimbo de Suárez, a tosse que de tantos em tantos minutos sai do gabinete da senhora Schmidt, o perfume cítrico de Miss Roberts…».
Ou seja, o fantasma acumula em si (mediante metonímias) todas as manifestações de vida dos diversos funcionários da repartição, assim transformados num fantasma colectivo. Mas também concentra em si todas as acções habituais que compõem a rotina do contexto laboral: «o carrinho do café e os croissants às dez e quarenta, o cinzento fluir das pastas dos processos…».
E mesmo assim o monstro, ou melhor, o fantasma monstruoso, não tem a ver com o contexto específico desse escritório, ele é uma espécie de vampiro difuso, que se alimenta do trabalho em geral, do trabalho assalariado enquanto prática de um sacrifício colectivo: «o monstro vive do cachimbo, da tosse, das pancadinhas do lápis, é de coisas assim que se compõe o seu sangue e o seu carácter, porque López acabou por se aperceber de que o monstro é diferente de outros monstros que ele também conhece, tudo depende do modo como se solidifica, de que tosses ou janelas ou cigarras circulam pelas suas veias». Isto é: «Se alguma vez supôs que o monstro era sempre o mesmo, algo de ubíquo e de inevitável, bastou-lhe trabalhar em empresas diferentes para descobrir que havia outros, ainda que de certo modo fossem sempre o mesmo monstro…».
E esse monstro «apenas se deixava reconhecer por ele, ao passo que os seus colegas de escritório não pareciam sentir a sua presença»: a experiência de López no escritório (a sua relação com o trabalho) é diferente da dos outros colegas porque ele procura, como Cortázar nos explicou na introdução do livro, o «mínimo de vida pensante» sem o qual «a alma não pode viver e a vida é como se já não o fosse». A visão de López consegue captar o fantasma porque o seu é um olhar crítico, enquanto os outros colegas já se acostumaram ao modo funcionário de viver, para usar a expressão do poeta O’ Neill.
Por esta lógica, o monstro de López materializa-se como fantasma não apenas do trabalho assalariado, mas também como reformulação (ou caricatura?) de outro monstro mitológico, o Leviatã, que o filósofo Thomas Hobbes usou para fundar a teoria do poder absoluto. O monstro de Hobbes resumia simbolicamente o Estado enquanto grande corpo cujos membros eram os cidadãos-súbditos. O Leviatã engolia os direitos individuais (as vidas singulares) para os transformar numa entidade colectiva que se sacrificava para o bem comum. O instrumento da renúncia era um contrato (social, no caso de Hobbes, e laboral, no caso do senhor López!) mediante o qual a vontade de cada um era transferida, em troca da paz e da segurança, para uma entidade superior (o Leviatã, ou então «qualquer uma das empresas» do senhor López) através de um pacto de união que era também pacto de sujeição.
Aliás, a própria iconografia do Leviatã, tal como foi impressa na edição original do livro de Hobbes em 1651, e à qual o desenho do monstro realizado por Cortázar não será alheio, é um corpo que na sua textura engloba muitos corpos.
López, ao assinar o seu contrato de trabalho, não aceita implicitamente o pacto de união com os seus colegas, nem a sujeição que ele pressupõe, e é por essa razão que é um outsider: embora tenha de entrar inexoravelmente no escritório às 9 a.m., fica a olhar ‘de fora’ para o decorrer da rotina diária que nele se desenrola (cultivando o alheamento para resistir à alienação, dir-se-ia) e assim é o único que consegue ver o fantasma monstruoso. «Por um bocado, parece-lhe ainda irrisório que o monstro tenha estado à sua espera para começar uma vez mais a viver, que tenha estado à espera dele, que é a única pessoa que o detesta e o teme, que tenha estado à espera precisamente dele e não de qualquer um desses colegas que não sabem da sua existência e que continuariam absolutamente sossegados mesmo se soubessem dela, mas também podia ser que fosse por isso que o monstro não existisse quando estavam só eles e faltava López. Tudo lhe parece tão absurdo que queria estar longe e não ter de trabalhar, mas é inútil, porque a sua ausência não matará o monstro…».
Monstruoso é o vínculo, diz-nos Cortázar, e aqui o vínculo é duplo: por um lado, trabalho e trabalhadores estão ligados pela necessidade de se alimentarem reciprocamente, alimentando ao mesmo tempo o monstro e, por outro lado, López e o monstro são unidos pela conexão que a visão fantasmática estabelece: o fantasma monstruoso apoderou-se dos olhos de López e, como só vive no/pelo olhar dele, para ter a oportunidade de se materializar ficará perenemente à espera que o «pobre sujeito» se veja obrigado a assinar um contrato e sentar-se a uma secretária, neste ou noutro escritório. Só assim, por paradoxal que seja, o monstro «ficará feliz com uma horrível felicidade inocente por os seus olhos serem uma vez mais os olhos com que López o olha e odeia».
[1] Artaud citado por Cortázar na introdução de A Volta ao Dia em 80 Mundos. Lisboa: Cavalo de Ferro, 2019, tradução de Alberto Simões, pág. 13. Os sublinhados, nesta citação e nas citações seguintes, são meus.
[2] Ibidem, pp. 41-45.