Clara Rowland — Cofre de fantasmas (Drummond de Andrade)
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“Do lado esquerdo carrego meus mortos / por isso caminho um pouco de banda”. Na série “Cemitérios”, de Fazendeiro do Ar, este dístico entra como o “cemitério” número IV, e é um cemitério “de bolso”. Muito do que se passa na poesia de Drummond envolvendo espectros e fantasmas — da moça-fantasma de Belo Horizonte aos mortos de sobrecasaca, da viagem muda com o pai no deserto de Itabira ao diálogo com o filho “que não fiz” no poema “Ser” — está contido nesta imagem, origem possível, aliás, do poema em prosa “Sobre o Lado Esquerdo” de Carlos de Oliveira, que terminava com a imagem do coração do homem que dorme esmagado pelo peso do sangue. No poema de Drummond, há e não há peso (noutro poema, lemos: “sou só eu a portar o peso dessa casa / que afinal não é mais do que sepultura rasa”). É nessa leveza torta do “caminhar um pouco de banda” que o mistério do corpo habitado pelo fantasma, ou do fantasma carregado pelo corpo, ganha figuração, mostrando como o problema do fantasma, em Drummond, é antes de tudo um problema de forma: fôrma, invólucro, contentor. Já o era naquela figuração espectacular da mesma condição “portante” de coisas espectrais que aparecia em “Tarde de Maio”: “Como esses primitivos que carregam por toda a parte o maxilar inferior dos seus mortos / assim te levo comigo, tarde de maio”.
Portar, carregar, caminhar: é interessante como esta dimensão portátil do fantasma drummondiano dialoga com a situação narrativa básica desta poesia desde o seu começo: a do sujeito que vagarosamente caminha e encontra no seu caminho um obstáculo, fora de si, que lhe interrompe o movimento — pedra ou máquina do mundo. A oposição entre dentro e fora encena-se então em campo aberto, na interrupção reflexiva, confundindo a vida e a vida das retinas. Já nestes poemas, em que o movimento do corpo no espaço continua a ser fundamental, é de um obstáculo, peso, ou fardo interior — o fantasma com e sem peso — que se trata, paradoxalmente esvaziado de materialidade, convertendo o corpo em contentor oco que se deixa moldar pelo vazio que carrega.
Voltando ao cemitério de bolso, e descendo um pouco os olhos pela página, tropeça-se logo no cemitério seguinte, que já não é de bolso, e sim “errante” — uma urna carregada pelo Brasil inteiro por uma tia e que, nos versos finais, se torna “urna a que me recolho para dormir enrodilhado / urna eu mesmo de minha cinzas particulares”, instaurando uma inversão estranha entre dentro e fora, em que o sujeito por analogia se enrodilha no interior da urna que supostamente carrega, e na qual se transforma. E alguns poemas depois, no enorme “Elegia”, o mesmo verbo recolher encontra uma das fórmulas que melhor parecem fixar esta relação entre contentor e coisa contida: “E vou me recolher / ao cofre de fantasmas, que a notícia / de perdidos lá não chegue nem açule/ os olhos policiais do amor vigia”. Notícia de perdidos, olhos policiais, amor vigia: voltamos, por momentos, ao léxico do primeiro Drummond, o Carlos de Alguma Poesia, “torto no seu canto”. No dentro do fora de Drummond parece caber, do mesmo modo, o segredo, a poesia incomunicável e o fantasma.
Na secção “Os lábios cerrados” de Claro Enigma, atravessada de uma ponta à outra pelo fantasma do pai, Drummond condensava com precisão a teoria desta relação, a ponto de ser difícil sintetizá-la, com este começo tão amplo: “Cada dia que passa incorporo mais esta verdade, de que eles não vivem senão em nós / e por isso vivem tão pouco; tão intervalado; tão débil. / Fora de nós é que deixaram de viver, para o que se chama tempo”. Os mortos são, aqui, ao mesmo tempo distantes e “os nossos atuais habitantes / e nossos hóspedes e nossos tecidos e a circulação nossa”. E a condição “sem condição” dos vivos é a de “ter e não ter em nós um vaso sagrado, / um depósito, uma presença contínua”. Arrisco então que o poema “Convívio” é um momento determinante na poética de Drummond, pelo modo como figura (urna, vaso, depósito) a relação entre os mortos “oblíquos” – tortos, portanto – e o cemitério de bolso que é o corpo como invólucro ou cofre de fantasmas, nova morada do morto. Mas não apenas: no final do poema, a vida que se atribui aos mortos arma o quiasmo que faz deles o molde espectral da vida dos vivos: “Ou talvez existamos somente neles, que são omissos, / e nossa existência, apenas uma forma impura de silêncio, que preferiram.” Mais uma vez, como na exploração retórica da catacrese que anima o jogo de palavras em Drummond, a forma delimita um vazio de que se faz contorno espectral.
Destas inversões está a poesia de Drummond cheia, já sabemos: desde o reflexo do velho “Retrato de família” que “me fita e se contempla / nos meus olhos empoeirados” não permitindo mais distinguir “os que se foram / dos que restaram”, acomunados pela “estranha ideia de família”, à “Comunhão” de A Falta que Ama, em que “todos os meus mortos estavam de pé, em círculo, eu no centro”, mas sem rosto, até que “notei um lugar vazio na roda / lentamente fui ocupá-lo. / Surgiram todos os rostos, iluminados”, o convívio entre mortos e vivos é muitas vezes feito de duplos e contaminações. Num poema tardio, intitulado “Antepassado”, esta força de atracção assume a forma terrivelmente irónica de uma condenação à repetição na própria duplicação: “Refaço os gestos que o retrato / não pode ter, aqueles gestos / que ficaram em ti à espera / de tardia repetição, / e tão meus eles se tornaram, / tão aderentes ao meu ser, /que suponho tu os copiaste / de mim antes que eu os fizesse, / e, furtando-me a iniciativa, / meu ladrão, roubaste-me o espírito.”
“Meu ladrão”: muito se poderia dizer sobre estes possessivos, mas na verdade interessa-me aqui continuar a perseguir uma das implicações desta posse, que é a de converter o corpo num espaço assombrado, ou possuído, pelo espectro de que se faz morada. Não é o que acontece quando esta poesia imagina ou sonha outro edifício, como no caso emblemático, e decisivo para toda a poética de Drummond, da morte de Manuel Bandeira. Em “Desligamento do Poeta”, é a morte do corpo que se descreve como isolamento, recolhimento, “cápsula em si mesmo contida”, abrindo a possibilidade da “circulação do poema sem poeta”, “forma autónoma de toda circunstância”, “escrita no ar”. No caso do poeta, e do poeta que para Drummond representava mais pungentemente um ideal de poesia como comunicação, é a poesia, na coincidência entre o nome desvinculado do portador e a sua obra poética, que se faz morada do que sobrevive “à ausência definitiva do corpo desintegrado”. A utopia poética que Bandeira representa para Drummond, enquanto poeta em nome próprio, ilustra-se bem neste funcionamento excepcional do resto e do rastro: plenamente identificado com a pura poesia, sem fantasmagoria.
Ao contrário, todos estes “meus mortos” de que falei até aqui não têm nome. Até a discutida equivalência entre fantasma e pai em tantos deles é sinal disso. “Com tinta de fantasma escreve-se Drummond / é tudo quanto sei de minha genealogia”, lemos num poema tardio intitulado “Brasão”: a viagem da família através da carne, para recuperar tanto a pungente comunhão de “Viagem na Família” quanto o final de “Retrato de Família”, é um processo tanto de transferência quanto de espectralização. Percebe-se por isso que um poema como “Perguntas” — com aquele começo impressionante, “Numa incerta hora fria / perguntei ao fantasma /que força nos prendia, / ele a mim, que presumo /estar livre de tudo,/ eu a ele, gasoso, / todavia palpável / na sombra que projeta / sobre meu ser inteiro” — na antologia poética de 1962, organizada de forma tão rigorosa por Drummond, esteja na secção “A família que me dei”. Não tanto por singularizar em testemunho uma memória da família, mas por encontrar na figura da família — circulação, herança, transmissão — um modelo para a tematização obsessiva do resíduo, do rastro, do legado que define a poética de Drummond — “de tudo fica um pouco” — ao mesmo tempo que se alimenta do seu reverso: o fascínio pela dissolução, dissipação, apagamento que um poema como “Nudez” figura de maneira tão clara: “a morte sem os mortos”; “sublimes ossuários / sem ossos”.
Talvez seja possível então tentar reler a poesia familiar de Drummond a esta luz, ou — mais fotograficamente — com esta exposição: a carne, como continuidade de um suporte partilhado, permite figurar nesta poesia a habitação imaterial do corpo pelo fantasma inquilino, confundindo os limites desse mesmo corpo e a sua oblíqua identidade. Ou: o corpo — menos do sujeito do que dos mortos que possui — é no drama familiar de Drummond o espaço legível, ou visível, de um esvaziamento radical, outra forma de dar forma a uma poética da catacrese.
Numa crónica de Passeios na Ilha intitulada “Segredos”, exemplo cristalino da qualidade da prosa de Drummond, este vínculo entre a poesia incomunicável deste poeta torto e o poeta como portador dos seus fantasmas exclusivos é ilustrado de modo preciso. Imaginando o homem da província a deambular pelas ruas da grande cidade para onde se mudou, Drummond descreve-o a carregar consigo “a recordação do amigo morto há muitos anos e de quem nunca ninguém ouviu falar, nesse meio novo”. Prossegue a crónica: “A lembrança do amigo existe apenas dentro desse novo habitante da cidade, que gostaria de comunicá-la a outros habitantes, mas (…) considera inútil essa tentativa de comunhão em torno de algo estritamente pessoal e indelegável — e cala-se.” A recordação começa assim a empalidecer, mas é isso mesmo que a transforma, usando uma imagem da abertura da crónica, num “indestrutível fantasma, que é a verdadeira essência do amigo, fixa em meio à liquefação incessante de nós mesmos e das formas que nos rodeiam.” Esse fantasma é, para o poeta que deambula pela cidade como seu portador anónimo, um segredo (fique torto no seu canto) com o poder de reconfigurar, convertendo-a em reverso concreto de uma espectralidade predominante, a própria ideia de cidade: “Admitirá que segredos iguais se cultivam na grande cidade e, mesmo, que uma cidade, exclusão feita de prédios, veículos, objetos e outros símbolos imediatos, não é mais que a conjugação de inúmeros segredos dessa ordem, idênticos e incomunicáveis entre si, e pressentidos somente por poesia ou amor, que é poesia sem necessidade de verso.” A poética da catacrese de Drummond encontra aqui uma das suas figuras mais poderosas: a de uma comunidade incomunicável — espectral e violentamente individual — que só alguma poesia permite pressentir.