Fernando Guerreiro — Os deuses estão entre nós
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(memória de Margarida Medeiros e Nuno Júdice)
Se a “materialidade” das imagens de cinema — sempre uma “ficção” da matéria, como observa Jacques Aumont no texto de abertura da edição de 2008 de Matières d'image, redux — resulta do “efeito de duração” do plano (a “duração” como suspense, reserva de uma actualização, entrada no tempo e na figuração), ou seja, da insistência (intensificação) de uma “presença” que se traduz como um estar-lá da imagem que revela a “impressão”/ “marca” (efeito de molde: “empreinte”) das coisas nela (segundo o duplo efeito de “sudário” e de “mumificação” referido por Bazin em “Ontologie de l’image photographique”), então, essa insistência — de uma ocasião (situação) de imagem — constitui o lugar de uma modulação, transumância e transformação (metabolização) da luz que, no seu jogo de matizes (sombras), abre ao figural: à modulação (pregnante) da forma (trans-aparição da imagem, figuras, na luz) pela “pulsão” (desejo) das imagens (numa formulação que lembra Maria Gabriela Llansol, Aumont refere que o “trabalho de figuração”, para ele o “figural”, “produz-se no limite do figurável”).
É neste quadro que se situa a questão da figuração, no cinema do vampiro.
Para lá do que nos seus “cenários de aparição” (vd. o Nosferatu de Murnau [1921] ou o Dracula de Tod Browning [1931]) pode haver de reminiscência e reutilização (profana) do teatro/dispositivo da Anunciação na Pintura — com Drácula no lugar do anjo (Gabriel) e Mina no da Virgem —, nessas ocasiões o Vampiro tende a marcar-se como “ausência de reflexo” (imagem) no espelho (simultaneamente motivo cenográfico e dispositivo de mise en scène, revelação), ou seja, como um menos da imagem que desconstrói a situação de representação: se em Der Student von Prag de Stellan Rye (com Paul Wegener, 1913)é o reflexo que sai do espelho, criando uma situação excedentária no real, aqui (veja-se como no filme de Browning o espelho é utilizado por Van Helsing para pôr em evidência essa falta), desregulada a situação projectiva da profundidade de campo e do espectador na imagem (ela fica como que aligeirada do seu corpo e do sentimento de realidade que ele suporta), entra-se/passa-se para o outro lado, a cena (teatro) do imaginário = fantasma. Assim, se a primeira aparição do Vampiro é da ordem da alucinação, todas as outras são oníricas, dão-se no plano do sonho.
O suplemento desta situação “deficitária” do ponto de vista da percepção e da representação, encontramo-lo em The Prince of Darkness (1987), de John Carpenter, em que o excesso, saturação imaginária (fantasmática) da imagem, rompe o ecrã (representação) e se dirige para nós, procura tocar-nos, passando-se da visão para o tacto. Alucinação na alucinação (cf. também In the Mouth of Madness, de 1994) que irealiza o real e realiza o fantasma (a referência literária aqui já não é Bram Stoker mas, claro, H.P. Lovecraft).
Num dos seus filmes menos amados, In the Mouth of Madness, John Carpenter constrói a hipótese po(i)ética de um escritor cujas ficções, uma vez lidas, se incarnam e inscrevem directamente no real (e na vida) dos seus leitores. Neste filme essencialmente lovecraftiano, a escrita é concebida não só como convocação, chamamento dos espíritos/fantasmas — os seres primordiais de Cthulhu no universo, versão cosmogónica de Lovecraft — mas, como em Poe, William Burroughs ou Philip K. Dick (Rimbaud, Lautréamont ou Leopoldo Maria Panero), também como alucinação metamórfica, uma imaginação real a entender no âmbito do que designamos por um materialismo (realismo) absoluto do simulacros.
Num excelente estudo sobre o autor (H.P.Lovecraft — contre le monde, contre la vie, 1991), Michel Houellebecq refere-se a um “materialismo absoluto” que estaria na base do seu “terror objectivo” que procuraria não só produzir sensações mas agir directamente no real e nos leitores através dessas sensações — afinal, o motor das alterações tanto do seu estado de percepção como do seu metabolismo. Já para Maurice Lévy (Lovecraft, 1972), Lovecraft escreve (=alucina) (“tenho razões para crer que a minha aventura pertence ao domínio da alucinação”, observa Lovecraft) “a partir de dados puramente sensoriais” — o que parece corroborado pelo autor (em Supernatural Horror in Literature) para quem “a autenticidade de uma narrativa não reside na ingenuosidade da anedota mas na capacidade de criar uma verdadeira sensação”. Para Lovecraft (mas também para Rimbaud ou Cronenberg), na escrita, trata-se não tanto de “representação” — cópia ou pintura diferida do mundo — mas de uma (re)criação, de uma “segunda vinda” que é sempre não o “eterno retorno” do mesmo e do conhecido mas a novidade inauguradora (e por isso inquietante e assustadora) de uma primeira vinda.
Seguindo a indicação do inesperadamente justo título da tradução portuguesa de “The Case of Charles Dexter Ward”, os mortos podem voltar, mas já não como “mortos” e antes como (seres) vivos alterados de uma espécie a vir presente-futura. E isto porque, como queria Hölderlin, os deuses já estão entre nós.
Fantástico dos “medos originais” (“medo do desconhecido” ou “mistérios terríveis do tempo e do espaço”, como ele refere), o fantástico “realista” (ou a realidade do fantástico) de Lovecraft constitui um fantástico da “incarnação” (Lévy) mas de uma incarnação doente, mutante, produtora de seres híbridos e impuros que constituem ao mesmo tempo os protótipos experimentais de uma nova criação de que fazem também parte o Drácula de Bram Stoker ou as criaturas do barão de Frankenstein pensadas por Mary Shelley.
Não há assim, do ponto de vista da criação, verdadeiras diferenças entre romance, conto ou poesia. Ou entre escrita, cinema e vida.
Em todos os casos trata-se sempre da criação pela palavra (pelo “poder da palavra”, como diria Poe em Eureka) de “objectivações alucinatórias” ou “oníricas” (de sonhos que são como vídeos activados originais da criação sempre a acontecer, em acto, do mundo: “o sonho é sempre a cosmogonia de uma noite, todas as noites o sonhador recomeça o mundo”, escreve Lovecraft), e não de um “outro mundo” (de um suplemento compensatório de fantasia) mas de uma realidade já lá, uma realidade intersticial e virtual, numa palavra, entre, que dá realidade à própria realidade em que vivemos.
Se nos encontramos no quadro de uma “literatura dos sonhos” (e para Houellebecq a obra de Lovecraft é uma “gigantesca máquina para fazer sonhar”), devemos entendê-lo no sentido criacionista objectivo em que Charles Nodier, no início do século XIX, já a entendia e praticava. Para Nodier (autor de Smarra ou les démons de la nuit, 1812, prequela pouco conhecida dos Chants de Maldoror de Lautrémont/Ducasse, 1869), o homem viveria simultaneamente duas vidas: a vida acordada e a vida dos sonhos. A literatura (a poesia), assim como as alucinações e os delírios somatizados como o vampirismo, constituiriam a projecção realizada dessa vida dos sonhos na vida diurna que progressivamente a alteraria e substituiria. Afinal, como em Mulholland Drive de David Lynch.
O próprio Lovecraft sublinhou o carácter inaugurador dessa primeira vinda (real) que, talvez — há quem pense assim —, pode ser precipitada pela escrita: “Os Antigos existiram e continuam a existir. Não nos espaços nossos conhecidos mas entre esses espaços. Espaços primordiais, sem dimensão, poderosos e serenos”.
Se se quiser, para facilitar, pense-se tudo isto em função da problemática mais contemporânea das imagens reais e virtuais. Da verdade actual e performante, e portanto real, de todas as imagens.
A própria matéria de que são feitos não só os sonhos mas a própria vida.