David Gonçalves — Olhar quebrado, a debatê-lo (La Chimera)

Pende solto um fio sobre La Chimera, um fio que nos leva a supor, como na pequena elegia de Eugénio de Andrade, que deva “haver um caminho/ para regressar da morte”, pois o filme começa por nos dar a ver os últimos momentos de uma viagem cuja partida e destino não conhecemos. Sabemos apenas que, para a validar, Arthur leva consigo um “estranho bilhete” que seria o único meio de o situar no tempo e no espaço que excedem os da narrativa. Ao que tudo indica, o nexo a priori da narrativa é constituído pelo encarceramento e a morte da amante de um homem que agora volta à terra de onde partiu. Rapidamente nos apercebemos, contudo, de que o trajeto deste retorno descreve uma tangente com um território imprevisto cuja fronteira é controlada, na senda do Orphée, de Jean Cocteau, por espelhos. É a morte. A sua geografia não se intromete no itinerário da viagem, mas o seu castelo devoluto assombra todo o percurso. A presença dos espelhos é enfática pois estes duplicam o espectro da ação, fazendo corresponder a cada sentido um simétrico que se escapa em sentido oposto. Assim, o egresso e o regresso do/ao mundo dos vivos fazem parte de um mesmo plano, e estes reflexos contíguos onde os trânsitos pela vida e pela morte se veem emparelhados são a expressão da própria Quimera que dá nome ao filme. Arthur procura travar contacto com um fantasma, procura um sinal subterrâneo que o devolva à malha tecida por uma vida passada, mas fica claro que ele já não se distingue de uma alma penada sobre quem se fixou o olhar obsidiante da morte. O fio que de um lado pende em aberto e que do outro espera nas mãos da que com eles tece “os dias sem memória” presta testemunho a esta ambivalência, mas confere-lhe também um ponto para onde podem convergir estas linhas da ação: existe um sinal à espera de ser ouvido no cruzamento entre os mundos. Sob o solo jaz o desejo, e o desejo deseja a comunicação. 

You’re not made for human eyes

Encerrar o âmbito da história no círculo que foi descrito é votá-la a ter no princípio uma transgressão, e o filme abre sob o olhar de Beniamina. O crime com que se inicia a narrativa é, portanto, de natureza órfica.

Lembremos: no mito de Orfeu, assim como figura no livro X das Metamorfoses de Ovídio, Eurídice morre envenenada por uma víbora que se esconde na relva por onde caminhava a recém-casada ninfa. Orfeu, poeta do Ródope, com quem casara, após prolongado luto terreno, desce ao Hades para cantar aos soberanos do mundo “sem-gozo” um pedido: que a morte de Eurídice seja revertida e que esta seja devolvida aos vivos para que possa gozar a sua maturidade. Os termos em que a proposta é decalcada merecem atenção. Na tradução inglesa de A.S. Kline temos:

I beg you, by these fearful places, by this immense abyss, and the silence of your vast realms, reverse Eurydice’s swift death. All things are destined to be yours, and though we delay a while, sooner or later, we hasten home. Here we are all bound, this is our final abode, and you hold the longest reign over the human race. Eurydice, too, will be yours to command, when she has lived out her fair span of years, to maturity. I ask this benefit as a gift; but, if the fates refuse my wife this kindness, I am determined not to return: you can delight in both our deaths.

Aqui o canto lírico toma a forma de uma negociação na qual se debate a concessão de um favor. A benesse, que deverá ser encarada como uma oferenda pela parte dos deuses, e portanto, um movimento da sua vontade, constitui o que em inglês se designaria por “borrowed time”, uma medida de tempo de empréstimo, um crédito. A expressão “living on borrowed time” sublinha uma transformação “não-corpórea” despoletada por um encontro crítico de um sujeito com a morte, com a sua morte, a morte personalizada. Essa transformação atua sobre a disposição do indivíduo perante a certeza desse destino. O sujeito que assim escapa deve então o tempo do qual foi desapossado à morte, mesmo sabendo de antemão que este sempre lhe esteve legado. Talvez fosse um esforço falaz estender este raciocínio, não fosse o caso de que Orfeu, no seu discurso/poema, não faz senão colocar em evidência todos estes termos de outro modo inertes, operando uma espécie de palpação da linguagem, isto é, concedendo uma atenção háptica a todas as partes que constituem o corpo do dito. Aí reside a poesia naquilo que se apresenta como um discurso puramente retórico. As consequências da encapsulação destes dois efeitos, o lírico e o retórico, numa mesma unidade são desdobradas se os pusermos de lado com a sentença de Yeats em Anima Hominis, “We make out of the quarrel with others, rhetoric, but of the quarrel with ourselves, poetry”. É certamente de um embate que se trata quando Orfeu oferece a sua própria vida como garantia deste crédito, e o que se opera no processo é uma dupla implicação, pois a partir do momento em que decide abrir a partitura do fatum para defender o seu caso, os termos do seu combate interior são revelados: a continuidade da sua vida está posta em causa e responde ao mandato da sua própria morte (devinda figura cripto-judicial, como no filme de Cocteau) que ficará encarregue de  garantir o cumprimento das condições da sua libertação, mantendo uma vigília incessante sobre o condenado. Só quando Orfeu quebra o interdito (insustentável) de não olhar para a sua esposa no caminho de volta à terra, devolvendo-a à morte prematura, é que a sua pena começa verdadeiramente, e é este também o ponto de partida de La Chimera. We hasten home, como que carregados pela pressão própria do fim da jornada e da derradeira pergunta que coloca: o que fazer com o tempo que resta, o que fazer com o tempo que não pertence a ninguém? 

 

lábio de mármore, discreto

A forma como La Chimera procede do mito de Orfeu está legível nos fragmentos que o processo mítico espalha pelo filme. Antes de a imagem de Beniamina nos ser vedada, a personagem interpela-nos diretamente: pergunta se percebemos que o sol nos persegue, como o olhar num retrato (vetusto, “a pintura antiga”). O seu próprio olhar é projetado para o centro do quadro, mas o filme distorce, e em certa medida anula, a relação que aí se estabelece com o objeto visado ao furtá-lo, colocando no seu lugar a matéria inerte (narrativamente ausente) da visão do espectador (e bem vemos a influência de Indiana Jones nesse sleight of hand). Podemos, portanto, incorporar e repetir o gesto do poeta condenado em diferido, porque o crime foi encerrado naquela imagem. O signo da culpa está, contudo, impresso no ombro tatuado de Beniamina: um sol permanente que poucas vezes dorme no decorrer do filme, a vigília incessante, o signo do carrasco. Se nesta primeira parte se trata de uma substituição (uma transposição de papeis de diferentes ordens) do objeto do olhar, o que se enceta na segunda parte da ação é, retomando o mote, uma espécie particular de metamorfose, segundo a qual os diferentes atores se ressubstanciam, antes num movimento de sublimação instantânea do que de camuflagem.

Ora, Arthur é, por vocação, um ladrão de túmulos. O contingente de tombaroli que o irmana serve-se da Quimera que o liga ao mundo inferior para se aproximar do mito antigo, prescrito, de subverter a pobreza geral na qual se veem soterrados os que nada possuem através da recuperação dos tesouros deixados pelos mortos. O papel  que dita a rutura com o jogo de relações de classe, com a usura do trabalho, invade e transmuda a matéria viva desses sujeitos, que fossilizam, tornam-se a inscrição material das regras do jogo. A força que vão colher ao Maestro, como chamam a Arthur, aparece como uma tentativa de quebrar a força mitológica pelo emprego da magia. Esta força avoluma, porém, no lado do mito, é centrípeta, o que quer dizer que conserva a forma que explora até ao seu limite, e consiste em querer concretizar o fabuloso pela instrumentalização de uma força fabulatória. E em primeiro lugar isto funciona; Sous la plage, le cimetière. Surpreende-se a nudez proibida de uma Diana Etrusca (novamente o interdito escópico, que à cabeça dessa cena é ditado por Itália) numa impossível estátua de mármore, e nela é encontrado o buraco negro de um rosto, o sonho desperto que se mistura à claridade do dia, e a voragem completa de todos os que encontram a figura. “Le rêve des gens est toujours un rêve dévorant qui risque de nous engloutir (...) le rêve est une terrible volonté de puissance et que chacun de nous est plus ou moins victime du rêve des autres, même quand c’est la plus gracieuse jeune fille (...) Méfiez-vous du rêve de l’autre, parce que si vous êtes pris dans le rêve de l’autre vous êtes foutu.” (Gilles Deleuze, vídeo da conferência “Qu’est-ce que l’acte de création”, 1987).

Não se adivinham as riquezas que cada um coloca na cabeça de mármore decepada, mas em algum momento Arthur confunde-a com a imagem que procura, no mesmo passo em que se confunde com ela. A correspondência entre a feição de Beniamina e aquela que Arthur segura nas mãos é especulativa, virtual: a cabeça é a parede branca sobre a qual se jogam as projeções ansiosas de cada um. O reconhecimento de um rosto nesse plano neutro é o que atrai e absorve o jogo de luzes de cada um dos espectadores-projetistas, de modo que as imagens individuais não se sobrepõem, aglutinadas pelo buraco negro do reconhecimento. O que a analogia com Beniamina tem de especial é estar ligada ao édito espectral (ecoado por Itália quando recusa participar do saque a que assiste) que impede Arthur de alguma vez tornar a contemplar o seu fantasma íntimo. À luz do dia, esta sentença ganha a forma de uma advertência: Méfiez-vous du fantôme de l’autre. Assim avisado, antes de o conflito que opõe Spartaco aos tombaroli degenerar em impasse, Arthur restitui a lei transcendente que o condenou e dá ao mar aquela cabeça.

A perda do prémio sublima, no sentido físico de evaporação de matéria sólida, a identidade dos que nele investiram o seu desejo, desejo que funciona como o braço actuante de uma capacidade imanente de metamorfose individual. Quando os tombaroli perdem o seu prémio, perdem também a definição, esbatem-se, deixam de ser apreendidos como esses revenants de uma emancipação por vir. Esta mudança súbita, noutro campo, funciona como revelação, pois que Arthur assume finalmente à claridade do dia o seu estado de morto-vivo: dizem os antigos cúmplices que “ele está morto para nós”; a casa em que viveu é demolida na sua presença enquanto ainda despe o fato de linho e se serve dos poucos objetos que lhe restam, assistindo à cena como um poltergeist ao qual não dignificaram com a formalidade de um exorcista para expulsar. Pouco depois será soterrado tendo pagado as últimas prestações do seu tempo. “Although we delay a while, sooner or later, we hasten home.”

A necessidade do sinal

Passado este ponto onde a ansiedade em direção ao virtual foi rejeitada num movimento de fidelidade à morte, podemos começar a procurar por aquilo que deve sobreviver. Eis a forma que poderá tomar aquele tempo que já não pertence a ninguém: a retrospetiva, ou, colhendo o sentido etimológico primário da palavra respeito, re - specere, poderá ser o tempo para olhar de novo (a revoada da coruja de minerva, efetiva  post mortem). Respeitar, aqui, não seria tão somente atualizar a quebra do interdito que impõe a distinção do olhar, pois que olhar de novo é assumir o crime órfico, mas sim redobrar a atenção sobre o centro desse jogo de aparências que fazem a imagem de um lugar, que fixam as suas referências e que produzem uma parte da sua história, aquela que lhe concede uma armadura virtual, e investir sobre ela. É preciso passar da morte para que dela se distinga claramente o que permanece vivo.

No filme que vemos, este trabalho não é iniciado por Arthur, mas por Itália, que lho apresenta. O primeiro contacto entre estas duas personagens rapidamente estabelece a base da íntima conexão que irão tecer, aquela “ligação secreta” que sinalizam um ao outro numa das derradeiras cenas que partilham. Num momento da visita ao esconderijo que Arthur tem por casa, Itália, com figurativa inocência e figural cumplicidade, corrige ao inglês a pronúncia da palavra occhi (olhos), e oferece-se para lhe dar aulas de italiano. Contudo, de volta à casa que Itália tem por esconderijo, o que se mostra no jeito de uma training montage é o ensino alegórico de uma língua gestual que parece corresponder a um código privado de comunicação. Rapidamente nos damos conta de que a verdadeira proposta foi a do ensino da língua de Itália-sujeito.

A furtividade com que esta língua é concebida resulta da mesma pressão que obriga Itália a esconder as filhas na casa da suposta tutora de canto. O espaço de Itália pode ser caracterizado pelas diferentes ocupações desta: tanto o ensino de uma língua como a ocupação organizada de uma estação de comboios devoluta. Cada uma destas funciona como uma espécie de indicador químico que, quando depositado num certo meio, reage à perturbação causada pela presença de uma determinada substância e de a revelar a um observador externo. Ora, o que é colocado em evidência no contacto com este sujeito, seguindo a expressão de Maria Gabriela Llansol, é a impostura da língua. É imediatamente notória a hipocrisia constitutiva do agregado para quem Itália é ao mesmo tempo aluna e serva, e de como esta é a consequência de um processo contínuo e multigeracional de estratificação de relações de poder que ficaram por se refletir. Itália, vindo de fora, e sendo obrigada a esconder-se no subsolo, traça uma linha através desse substrato e dá-nos a ver uma fatia dele. O resultado é que, sendo um corpo estranho que comunica com uma matéria em vias da calcificação (a morte entrópica), e que se aloja entre as camadas inferiores dessa carcaça geológica, Itália reanima a língua operante nos discursos que fixam a imagem e a moral daquele território. Debaixo dessa pele, vemos palavras antigas a serem surpreendidas por novas práticas; são novas atualizações, portanto, dos sinais que subjazem aos signos passados, e isto não é mais do que respeitar, re-olhar, o dito. Animar o sinal escondido debaixo dos signos é a língua que Itália ensina a Arthur, e é o que o leva a rever o destino da efígie marmórea do amor que arrebatou às ondas e das linhas que nela se cruzam, rejeitando a promessa do ideal em prol do esforço contínuo do olhar que se quebra contra as estátuas: contra os objetos e as sínteses do tempo. Escava-se a pele do que não pertence a ninguém em busca do que pertence a todos.

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