Miguel Castro Caldas — Animais embalsamados
Esta fotografia é um frame do filme La Jetée, de Chirs Marker, 1962. À primeira vista é um homem e uma mulher a olhar para um hipopótamo. Pelo ambiente em volta — atrás, à direita, um dente, talvez de um elefante ou mamute; o chão que parece de tacos; as vitrines iluminadas ao fundo — sou levado a pensar que estas duas pessoas estão num museu de história natural com animais embalsamados. Então estão a olhar para um hipopótamo, ou para uma legenda informativa, o qual na fotografia parece estar vivo, mas está morto. Uma das particularidades deste filme é o facto de não passar 24 frames por segundo em frente dos olhos do espectador. Este frame fica cerca de 5 segundos à vista entre o anterior e o posterior. Como se sabe, menos frames do que 24 por segundo não dá ilusão de movimento. Este filme não quer dar a ilusão de movimento. É um filme com menos frames do que o tempo que dura. Seria enfadonho dizer que se trata de um filme de imagens paradas porque afinal todos os filmes o são. A diferença entre este e a maioria dos outros reside na quantidade de frames. Este tem poucos. Porquê? Estará este filme a querer dar ao espectador tempo para olhar com atenção para cada frame, na linha do que disse Viktor Shklovsky no seu ensaio de 1917, “A Arte como Processo”, que a arte consiste num processo de chamar a atenção para as coisas nas quais já não reparamos por força do hábito? Primeiro, qual é a força de hábito, aqui? Eu acho que é o costume que temos de julgar que as obras de arte estão vivas e nos falam e nos escutam. Então olhamos para o frame e dizemos: “Ali está um casal a visitar um museu”. Mas o que a imagem nos mostra com mais veemência, sem ilusão de movimento, é que aquele homem e aquela mulher são, como o hipopótamo que olham, peças de museu. Podem muito bem ser dois corpos igualmente embalsamados. Aliás, agora vejo que é mais o hipopótamo que os olha do que eles o olham. Ou melhor, com um olho olha para eles e com outro olha para mim, parece mesmo que com alguma ironia. Como se me dissesse, referindo-se a eles: “Os pobres, pensam que estão de visita, mas eles são daqui”. Shklovsky, no seu ensaio, sugere que a arte, entre outras coisas, consiste em aumentar a duração da percepção para que se possa “sentir o devir do objecto, aquilo que já se tornou não interessa à arte.” Mas com a duração enorme deste frame, sou obrigado a reparar naquilo em que ele se tornou, e tenho de corrigir a minha descrição inicial do que vi. Aquele homem e aquela mulher estão no museu de história natural. Mas não como visitantes vulgares de um museu. Eles olham para o objecto à sua frente? Ou são eles mesmos objectos sob o olhar de um outro visitante? Se eles estão lá colocados, posicionados deliberadamente, não são sujeitos.
A actividade de embalsamar consiste na arte de parar um processo. Embalsamar é reificar, é cristalizar, é parar o processo de decomposição de um corpo. É isso tudo, mas dando a ilusão de que continua vivo. Será que apenas com este frame podemos corrigir a tese de Shklovsky? A arte consiste num processo de chamar a atenção, mas não tanto para o que existe, que passa sem repararmos nele por causa da voragem do tempo que tudo leva, mas para o que já passou e, precisamente por causa da voragem do tempo que tudo leva, nunca mais volta? E mais: não é um processo de chamar a atenção — olhando-nos de volta — para o engano de também nós, como aquele homem e aquela mulher, pensarmos que estamos a olhar para um hipopótamo embalsamado, que diz a outro qualquer, referindo-se a nós: Os pobres, pensam que não são de cá.