Isabel Minhós Martins — Nem todos os lençóis cobrem fantasmas

A única imagem que guardo do meu avô é aquela que durante muito tempo representou para mim a morte: estou à entrada de um quarto mal iluminado, o chão é de tábuas compridas; à minha frente vejo uma cama de casal de madeira escura e, à sua direita, uma mesa e um candeeiro. A luz do candeeiro ilumina a cabeceira da cama; e na cabeceira, mais branca que os próprios lençóis, uma cabeça. É a cabeça do meu avô, o cabelo todo iluminado. Estende-me a mão ­­— mas aqui, hesito: será que estende mesmo? Ou terá sido o adulto que me trouxe até ali que pede que me aproxime? Não me aproximo. A distância a que estou da morte parece-me mais do que suficiente, não quero encurtá-la, não quero tocar aquela mão, não quero ver mais nada.

 

O quadro torna-se estático. A luz continua acesa. Não sei o que acontece à mão estendida do meu avô, ao lençol que o cobre até ao peito, ao seu pijama de mangas compridas.

 

Durante muito tempo descrevi este quadro à minha mãe, mas a imagem não parecia bater certo com a história da morte do meu avô. O meu avô, naquele lugar, naquela cama, com aquela luz? Tudo impossível. Para além disso, eu tinha dois anos, se tanto, quando o meu avô adoeceu, como poderia lembrar-me?

 

Foi a luz daquele candeeiro que me fez continuar a duvidar: aquela luz não poderia ter sido criada por mim, eu nunca poderia inventar uma luz assim. Para além disso, seria totalmente incapaz de desenhar tão bem aquela transição entre o claro e o escuro, a luz intensa sobre a almofada, já mais diluída no lado da cama que não estava ocupado, tudo o resto na penumbra. O meu avô do lado de cá, ainda.

 

Aceso, levemente fluorescente.

 

Recentemente perguntei a uma tia onde dormiam os meus avós antes de a minha avó enviuvar. Quis saber a posição da cama de casal no quarto em relação à porta e à janela, descrevi-lhe todos os detalhes. As duas imagens, a do meu quadro e a da realidade, finalmente coincidiram. O meu avô morreu nesse quarto e eu também lá estive. Não sei se se no dia da sua morte, se algumas semanas antes.

 

Há luzes que não mentem.

Nem todos os lençóis cobrem fantasmas.

Afinal talvez a morte seja branca (e até fluorescente).

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