Maria Joana de Melo — Nominatrix
Adoro filmes de terror, de todos os subgéneros: possessões, lugares assombrados, psicopatas, maldições, fobias, etc. Na verdade não me lembro de mais categorias, de alguma maneira todos parecem encaixar nestas, mas há que ler os teóricos, categorias à parte, uns dizem mesmo que o terror é o género mais cinemático de todos por ser puramente visual e jogar com o fora-de-campo. Todavia não é uma paixão antiga, nos meus tempos de juventude nunca fui de assistir ao terror pesado, o público para isso era restrito e andava sabe-se lá onde, talvez nas salas de filmes eróticos da Baixa, Pornos e Pathos andavam em par para mim. Por ter crescido a sete minutos da Cinemateca, tive uma adolescência excecionalmente cinematográfica, mas a minha necessidade de terror (o Stephen King diz que todos a temos e ele há de saber mais do que eu) era preenchida com filmes de medo e não de terror (as escolhas da programação incidiam mais sobre Rebecca ou Les Diaboliques do que sobre Godzilla), duas coisas completamente diferentes para Aristóteles, uma vez que o primeiro pressupõe a presença apenas iminente de uma imagem e o segundo a presença efetiva dessa imagem, o primeiro exige a nossa atenção absoluta e o segundo que desviemos o olhar, o que se veio a dizer depois sobre suspense e surpresa é apenas perífrase. Assim, os meus momentos de frisson sempre aconteciam mais com o fora-de-cena do que com o obsceno propriamente.
Um dia fui ao cinema Londres ver A Mosca, foi o meu primeiro contacto com um monstro peganhento cheio de orçamento e com efeitos especiais fora de série. O filme impressionava por oscilar entre a repugnância e a compaixão, a minha cabeça divagou até à fábula d’A Princesa e o Sapo, viscoso, ignóbil, assim, o filme ia além do terror, embora participasse da fobia da putrefação, que alimenta os filmes de zombies, e tudo o que ela representa, lembrei-me do fígado de Prometeu, dos corpos por enterrar nos westerns e nas tragédias gregas, à mercê das hienas e dos abutres, lembrei-me do cheiro de um bife podre. Apesar de tudo, com o tempo, fui apreciando cada vez mais o género, que ainda é dos menos híbridos e que me permite deliciosas elucubrações descritivas, normativas e psicológicas – regresso do recalcado, libertação do Id, etc. Também é um género que dispensa pesos pesados de Hollywood, quanto mais desconhecidos os atores melhor será o efeito, e cuja formalidade constitui um desafio: como fornecer um inescapável banho de sangue de forma surpreendente? Mas agrada-me, sobretudo, porque se desenvolve num plano extra-moral, numa visitação da loucura e do caos.
Tenho especial apetência para os temas da possessão, tanto por se basearem no medo judeo-cristão de um além tenebroso que vivifica a nossa culpa, e de que a loucura é a expressão mais sensata, como por se basearem também na fobia da alienação das nossas palavras e ações por um agente exterior (se dantes Atena telecomandava a raiva de Ajax, agora é a IA que nos dirige sabe-se lá para que fim), ou ainda por, simplesmente, constituírem uma forma de subversão do sistema, tema cuja popularidade nunca falha. Uma hipótese que recolhe admiradores na bibliografia é a de que a mulher possuída, no habitual cenário sadomasoquista, amarrada a uma cama, com trejeitos inspirados nas pacientes histéricas do Salpêtrière, contorcendo-se em arco, etc., é nada mais do que uma constatação da repressão sexual feminina. Hoje as coisas estão a mudar e há dias passou na televisão um filme em que o possuído não era uma rapariga mas um rapaz, e em que também o padre-exorcista acabava possuído, no entanto, não faltaram imagens de mulheres nuas, emergindo languidamente de uma poça de sangue, nem de vísceras fumegantes, o teor sexual continua presente e o filme lá foge para as tais salas da Baixa. Todavia os filmes de género vivem de muitas subtilezas e, desta vez, concentrei-me num elemento que se repete nos filmes de possuídos: a necessidade de chamar o demónio pelo nome próprio. Nomear o mal parece ser o primeiro passo para o eliminar. Além de uma prova do amor eterno entre cinema e psicanálise, esta nomeação permite ao exorcista introduzir a ordem no caos, colocando o mal tanto numa posição de distância como de inferioridade, porque é o nomeado e não o nomeador, o mal materializa-se, deixa de estar por todo o lado para ficar contido dentro de um nome, de uma frase ou de uma história. Uma coisa é sermos assombrados por uma entidade cujos desígnios desconhecemos outra é sermos assombrados pela tia Chica da quinta velha, assim, para resolvermos os nossos males, basta ser um nominator.