Marta Rema — A derrota sucessiva de todos os meus espantos
Uma semana na cidade onde nasci. Caminho em ruas conhecidas que desembocam em ruas que as obras, as construções e as demolições desfiguraram e me devolvem com dureza a imagem de acontecimentos importantes cujo cenário desapareceu totalmente. Há muitas casas em ruínas, algumas semi-demolidas para precaver desabamentos no passeio. Há ruas onde me custa passar porque me apetece ficar, ruas onde passo vagarosamente para observar e outras onde passo a correr, suspendendo a respiração para não ser contaminada por nenhuma memória. De porta em porta, a constatação infeliz de que o comércio no centro histórico continua a fechar é partilhada com o espanto da sobrevivência de lojas que permanecem iguais há trinta anos e mais. As lojas abandonadas, cujas montras foram tapadas com jornais desbotados do início do século, não foram substituídas, nada apareceu no lugar delas, nem outros negócios nem casas, e dão às ruas a aura de uma cidade fantasma.
O rio vai cheio. Está quase a transbordar depois das chuvas deste inverno. A água é verde e branca, opaca, como se as mulheres ainda viessem lavar. Aceno ao meu cunhado quando os nossos olhares inesperadamente se encontram após uma esquina, através de uma janela: eu na rua e sem destino, ele no seu escritório a trabalhar desde cedo. O sentimento consolador de poder ver a minha família todos os dias e a qualquer hora é tão raro que me parece que a cidade é toda nossa.
Tenho prazer em percorrer a cidade a pé, mas não quero cruzar-me com ninguém. As conversas apressadas e aborrecidas — abomino o afã que leva ao lugar-comum — com pessoas com quem não convivo há anos limitam-se quase todas aos tradicionais votos de fim de ano ou aos inquéritos eternamente reproduzidos que se revestem de uma consternadora hesitação: dirigem-se a uma fulgurante adolescente com um auspicioso futuro e colidem com uma mulher com cabelos brancos, solteira e sem filhos. Um amigo de quem me afastei ainda antes de sair daqui chora com a frieza da minha resposta à incompreensível exigência «porque é que nunca apareces?» Não me comovo e já não fico assustada por não me comover. Enquanto me afasto, gozo o consolo de talvez ter conseguido resolver a coisa pela raiz.
Bloqueio o cartão do telemóvel e, enquanto procuro pelo cartão com os códigos, encontro uma carta de uma amiga com quem deixei de ter relações. Datada de 2001, a carta fala de mim e de como ela se sente próxima de mim na minha desorientação, na minha tristeza. De como gostaria de tentar tocar-me «num momento mau». Esta carta, perdida entre papéis onde não mexia há vinte anos, é um sinal de uma pessoa com quem partilhei a mais desarmada intimidade e que já não existe para mim, que não conheço. Tenho a tentação de a fechar mal a abro e reconheço a assinatura, mas uma força mórbida puxa-me e dou por mim a fazer um esforço para a ler. Sinto que o mundo pára nesse momento. Estou com ela, uma vez mais. Quando termino, é como se uma dura consciência, muito viva, me tivesse apanhado: vejo a realidade como dupla, ela e o seu avesso, a vida e a sua sombra. Um pequeno momento de alegria é atravessado pela noção de que será interrompido, quem sabe se será o último. Caio numa vaga lânguida. Fecho a carta e não vejo ninguém na minha sintonia. Que animal verá assim?
Uma semana, uma missa de sétimo dia, um funeral e a notícia de outro a que não cheguei a tempo. Enquanto abraço antigas colegas de escola, percebo com indiferença que o inconformismo que me separava dos outros desapareceu. No cemitério, a minha irmã conduz-me à campa dos meus avós e os rostos familiares e vivos nas suas fotografias confundem-me, não restando à repulsa inexprimível mais do que vomitar umas quantas lágrimas grossas que já não sei o que significam. Outros mortos — que fui eu que matei bem matados, ao longo de muito tempo e com as minhas próprias mãos —, a contingência me força a encontrar sempre que venho. Aqui, não há escolhas.
Vou arrancando a alegria a um corpo arrebatado pela deriva. Quem fui eu? A que quis partir. Resta alguma coisa?
No Instagram, onde publico fotografias dos meus passeios, recebo mensagens que elogiam a beleza da paisagem. Onde estava esta beleza quando cá vivi? Por muito que me esforce, o que assoma é desolação. A inundação da biblioteca e o posterior encerramento por mais de uma dezena de anos, o incêndio no jardim-infantil, o fogo estival na serra, o fecho do Cineteatro Virgínia logo após a primeira ida ao cinema, cujos escombros me fixaram até à partida, o salão de jogos com a máquina de Tetris e as mesas de Snooker de onde saía carcomida pela solidão, o Trampolim, um café onde dançava até ser manhã e hoje não sou capaz de entrar, e opressão, opressão, opressão que me esperou ao raiar desde que me lembro e de que me despedia diante de uma estrela que brilhava mais à frente da janela do meu quarto, à qual todos os dias prometi sair dali mal conseguisse. Enquanto revisito mais um lugar, lembro-me que é sobre isto que escrevo. Sobre tudo isto, sobre este lugar. A derrota sucessiva de todos os meus espantos trouxe-me aqui, a um apagamento que não tenho qualquer intenção de reparar.